segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

A CIDADE DOS MORTOS.

Na cidade do Cairo, capital do Egito, cerca de um milhão de pessoas se aglomeram num complexo habitacional pouco ortodoxo. Este conjunto de residências em muito difere do que estamos acostumados a ver, ou mesmo, a habitar. Trata-se do conglomerando de vários cemitérios que ocupam uma boa parte da cidade (cerca de 7 Km) e que por suas características tem recebido o exótico nome de “A Cidade dos Mortos”.

Esta fantástica “necrópole” abriga, além de pessoas e sepulturas, mesquitas, escolas, butiques, vendedores ambulantes, polícia, água, eletricidade e alguns outros utensílios que transformaram esta necrópole num bairro vivo. Segundo a repórter Ángeles Espinosa, que visitou o local, os desabrigados vivem em meio às tumbas (que nada lembram as nossas por causa da tradicional pompa egipcía oriunda dos tempos dos faraós), único alojamento disponível dessa capital superpovoada.

Apesar de não ser nada pragmático, o conviver com os mortos não é algo novo, remonta a muitos anos em nossa “jornada” e passou por vários estágios. A princípio as pessoas que eram acometidos pelo “Único Mal Irremediável” (para citar um dos nossos), eram depositadas em Catacumbas, as quais posteriormente também serviram para cultos cristãos em meio as perseguições. Estas perseguições, por sua vez, geravam várias mortes de cristãos que se negavam a renunciar sua fé e transformavam-se em mártires. As pessoas que iam morrendo posteriormente, tendo em mente a “promessa do ressurgimento” quando da parousia, eram enterrados próximas a estes mártires, pois, no pensamento dos que empreendiam o velório, esta proximidade lhes garantiria uma “maior proteção” (e dava origem aos primeiros cemitérios).

Com o passar dos anos, este conglomerado de sepulturas recebeu também um local de culto, as posteriormente conhecidas Basílicas, que além de sua função religiosa também serviam para sepultar os mortos. Dentre estas, a mais conhecida de todas é sem dúvida alguma a Basílica de São Pedro, situada no Vaticano e que também possui sua conhecidíssima Necrópole.

Esta prática de se enterrar cadáveres em “solo sagrado” expandiu-se a ponto de as pessoas não mais enterrar os mortos em espaços comuns, mas, em cemitérios (agora firmados) que estivessem próximos a locais de culto. Todavia, só quem possuia acesso a esse tipo de “serviço” eram os ad sanctum (na tradução do meu pobre latim frustrado) os mais ricos. Esta prática tomou proporções inimagináveis na alta idade média, a ponto das igrejas abrigarem mais e mais cadáveres confundindo-se adoração e sepultamento. Por causa da demanda, os túmulos individuais foram se tornando cada vez mais escassos, pois, nas igrejas, tendo em vista o espaço, as pessoas eram esterradas num mesmo local sem especificação alguma. Esta coletividade se acentuou ainda mais Com o advento da peste negra, pois, os cemitérios (igrejas) ficaram sobremaneira abarrotados (não de adoradores em busca de salvação, mais de defuntos em busca de um pedaço de chão), fato que forçou a criação de sepulturas também nos espaços anexos aos templos (os chamados passos). A solução para este abarrotamento apenas surgiu com o passar dos anos, pois, com a proliferação dos fiéis os atos funebres se tornaram cada vez mais religiosos, o que necessariamente diminuia a obrigatoriedade de um túmulo in loco. Assim, os cemitérios passaram a existir também em locais onde antes não haviam igrejas, embora, elas fossem construídas depois (fato que ocorre até hoje só que em proporções menores, capelas).

Também contribuiu para pluralização dos locais de sepultamento a secularização cada vez mais presente no cotidiano das pessoas (rastro do iluminismo), bem como as profícuas preocupações médicas por causa do alto contato com os mortos (principalmente em meados do século XVIII na Alemanha e na França), as quais modificaram drasticamente a forma como os velórios ocorriam (agora restritos aos familiares), transformando também os locais de sepultamento, os quais passaram a ser mais isolados e higiênicos (eu sei, também não concordo, mas é a história, fazer o quê?) moldando a forma dos cemitérios e aproximando-os dos modelos que possuimos atualmente.

Com isso em mente, perceba que não só culturalmente como acabamos de ver ao longo da história e atualmente com “A Cidade dos Mortos” situada Egito, mas, em todo o tempo (agora falo espiritualmente), conforme relato bíblico, vivos e mortos (crentes e descrentes) dividem o mesmo espaço, com a única premissa de que estes últimos (descrentes) ainda podem mudar sua situação.

Observe!

Quando da escolha dos seus seguidores, Jesus empreendeu o seguinte diálogo visando por à prova aqueles que realmente tinham o interesse de segui-lo:

A outro disse Jesus: Segue-me! Ele, porém, respondeu: Permite-me ir primeiro sepultar o meu pai. Mas Jesus insistiu: Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos (Lc 9.59-60a).

A Bíblia sempre foi clara ao associar o pecado com a morte (Rm 6.23). Mas, com o diálogo acima, Jesus tornou ainda mais óbvio que todo aquele que ainda não o recebeu como Salvador (dom gratuito da vida eterna), está morto em seus delitos, uma vez que todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus (Rm 3.23) e a recompença para isso (pecado) é a morte. Perceba que o discípulo pedia para apenas começar a servir a Jesus quando o seu pai falecesse, mas Jesus, o aconselhara a deixar para os mortos o sepultar os seus próprios. O que se percebe é que todo o homem que ainda não recebeu a Jesus é um cadáver ambulante, que tem aspecto de quem vive, mas está morto (porque vivo, vive uma ilusão, e morto, habitará num caldeirão).

Depreende-se, portanto, que todos nós habitamos numa imensa necrópole.

Porque, assim como os egipcíos do Cairo (não literalmente, mas espiritualmente) convivemos com mortos no ônibus a caminho da escola, no cinema quando assistimos a algum filme, no restaurante quando tomamos as refeições, no trabalho, nas ruas, nas casas, enfim... Covivemos com os mortos!

Esta terrível premissa fenomenológica provoca uma insegurança inquietante e facilmente apreciada na seguinte indagação: Eu estou vivo, ou estou morto?

Ora, a resposta é fácil.

Se você, que acabou de ler este artigo, concordou comigo, parabéns! Você está vivo. Mas não apenas vivo, também com a sublime missão de trazer outros a vida (Jo 10.10).

Todavia, se você não concordou (porque ainda não têm Jesus), tenha bastante cuidado, pois, a Palavra é clara:

Os vivos, somente os vivos, esses te louvam como hoje eu faço(Is 38.19a).

Assim...

Meu querido defunto, se você quer viver (?), Aceite a Jesus e tenha vida em abundância nessa imensa necrópole, só que, fora da tumba!

Nas célebres palavras de Horácio...

Carpe diem!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

ALÉM DO VÉU DE MAYA.


Na Mitologia Hindu (Dighanikaya), o neófito (não iniciado), está sujeito ao self (uma espécie de sono, ignorância, prisão ou véu), até que é esclarecido por alguém que conhece o verdadeiro ser, “Brahma”, que simpaticamente o ensina acerca do conhecimento do mundo e da vaidade, desta forma, o homem é livre de suas próprias ilusões e conhece então o seu verdadeiro ser, encontrando enfim a orientação necessária para romper o “Véu de Maya”.

O Véu de Maya seria uma distração sensorial que impede o homem de ver o mundo da forma como ele é. Imagine uma imensa fila indiana a vagar pelo deserto, e imagine que existam inúmeras possibilidades de se empreender uma nova direção, todavia, todos os homens, por causa de um “tapa olhos”, não conseguem vislumbrar o que acontece a sua volta, sujeitando-se a tão somente olhar a nuca daquele que vai a sua frente. Romper o Véu de Maya seria deixar esta fila indiana através do conhecimento de que se é possível percorrer um outro caminho, um caminho não percebido até então pelos demais pelo fato do véu que os engana. Por causa do Véu, os homens pensam que estão orientados e no caminho certo, e por vezes não conseguem divisar o mal que vos espreita, o qual seja o caminhar para lugar algum e esquecer de seu lugar de origem.

Segundo Mircea Eliade, nos ensinamentos hindus os deuses caem do céu quando lhes falha a memória e seu pensamento se confunde; paradoxalmente, os deuses que não se esquecem são imutáveis, sublimes, eternos, de modo que não reconhecem qualquer tipo de mudança. O esquecimento equivale ao “sono”, ao acaso, a perda de si mesmo, à desorientação, à “cegueira” (a venda nos olhos).

Diz um velho texto hindu, o Chandogya-Upanishad que certo homem foi seqüestrado por salteadores com os olhos vendados, e após ser liberto num local ignorado passou a bradar: “Fui conduzido pra cá com os olhos vendados, fui abandonado por aqui com os olhos vendados!”. Após algum tempo alguém lhe remove a venda, e o homem passa a indagar o seu caminho de aldeia em aldeia, até que enfim consegue retornar para casa. Fato interessante, é que este mesmo texto diz que aquele que tem um mestre competente (que o ensina o caminho) consegue livrar-se das vendas da ignorância e atingir finalmente a perfeição.

Um certo sábio hindu comentou que este homem tolhido pelos salteadores foi levado para longe do “Ser” (seu lugar de origem) e se vê preso na armadilha do seu corpo (na fila indiana). Os ladrões representam as falsas idéias, sua vida transitória (o medo de romper a fila). Seus olhos estão vendados com a venda da ilusão (o véu de maya), a qual provoca um frenesi de incertezas, “sou o filho de fulano, sou feliz ou infeliz, sou inteligente ou estúpido, sou piedoso, etc. Como devo viver? Onde existe uma via de evasão? Onde está minha salvação? É neste estado nefasto e recheado de dúvidas que ele se encontra até que alguém “esclarecido” lhe retira a venda que o impede de ver a realidade concreta, o que está além do véu da ilusão e o coloca na direção correta.

A idéia de um estado de ilusão que se nos revela foi de certa forma ensejada a cultura ocidental de maneira mais ampla através dos escritos de J.J. Benitez (Operação Cavalo de Tróia), os quais tem colocado deveras caraminholas nas mentes do menos esclarecidos, bem como através da Trilogia Matrix, produção cinematográfica que de maneira direta exemplifica o estado de alguém que não ciente de uma realidade patente, se torna mero coadjuvante de uma realidade que o envolve drasticamente excluindo-o de participar de um acontecimento real. Ambas as idéias não apontando para o sentido real de que se poderia derivar o conceito de uma ilusão que acomete o homem e o torna escravo de uma teia de incertezas.

Todavia, o Apóstolo Paulo, muito antes que qualquer destes, já nos advertia a respeito de um véu que nos impedia de ver uma profunda e urgente realidade tão patente aos nossos olhos, mas, camuflada por um “tapa olhos” que nos impedia de divisar sua importância. Ele disse: “Mas, quando se converterem ao Senhor, então o véu se tirará” (II Co 3.16).

Paulo procurava nos alertar, através da Palavra de Deus, que o homem que não é esclarecido pelo Espírito Santo por meio da pregação do evangelho (paro o hindu seria o Brahma), encontra-se envolto numa bruma (na mitologia hindu o véu de maya) que o impele a caminhar distante em busca de um futuro longe de casa (nos lugares baixos, ínferos), distante de seu Criador. Todo homem que não conhece a salvação fomentada pelo Espírito de Deus, que só pode ser concedida através da morte de Jesus (Jo 16.7) na Cruz do Calvário, encontra-se escravo deste mundo de ilusões transitórias que se esvaem sem prédicas de tempo ao simples fluxo do viver. Mas, com o revelar da Palavra que é compreendida por meio da fé, o homem tem diante de si descortinado o “Véu da Criação” e passa a compreender a verdade perene que o envolve desde a fundação do mundo, entendendo o plano de ação do Criador de todas as coisas para restauração de sua vida. Quando a revelação do Deus Todo Poderoso irrompe na mente do que crê, o Espírito o liberta desta realidade transitória e lhe responde as dúvidas crucias que o infligiam tamanha angústia, fazendo-o perceber de onde ele veio, para onde ele vai, o quê o espera, e o que há além do caos disfarçado pelo véu.

Paulo, no mesmo texto, também fez menção à tristeza que o acometia pelo fato de alguns não se aperceberam da existência do véu, pois estes, mesmo sendo ensinados, continuavam sem compreender (II Co 3.14-15). Muitos, ainda hoje, talvez não acreditem na realidade do véu, pois, esta é a função do “tapa olhos”, ele existe para isso, não permitir a visão, a rememoração, a libertação, a salvação. Para essas pessoas, a única coisa a fazer é rogar a Deus que os liberte da efêmera ilusão da vida, dessa teia de vaidades que os envolve e os permita ver a realidade da vida, a qual está bem ali, “Além do Véu de Maya”.

Nas sábias palavras de Fauzi Beydoun:

Você vê o meu corpo e pensa que sou eu
Ele não é eu ele não é meu
É só uma dádiva dada emprestada
Deus foi quem me deu por breve temporada
É só uma roupagem, densa embalagem
Que não me pertence
Aliás, nada me pertence nesse mundo
Tudo é transitório, tudo é ilusório
Ainda que se pense que o que se vê é pura realidade
Na verdade, o que se está a ver
Não é mais que um lapso
Distorcido da eternidade

LIBERTE-SE!

domingo, 13 de dezembro de 2009

JESUS E O CISMA SAMARITANO (Parte 2)




“Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos” (Zc 4.6b).




Interessante o fato de pensar num texto para introduzir a segunda parte deste artigo e me deparar justamente com este em especial. O contexto é exatamente o mesmo, porém diverso fenomenologicamente. O profeta Zacarias (520 a.C.), contemporâneo mais jovem do profeta Ageu (520 a.C.), assim como este último, foi incumbido pelo Senhor de induzir o povo à “reconstruir o Templo”. Segundo Shedd, “A mensagem escrita de Zacarias, forma um significativo elo entre os profetas anteriores, a cujo ministério ele se refere e as fases posteriores da obra redentora de Deus, sobre a qual o seu livro presta tão eloqüente testemunho”. Segundo se depreende, o elo a que se faz referência diz respeito à posição que o Templo ocupava na adoração do povo, fato que norteava a premissa de sua reconstrução e todo o empenho por parte daqueles responsáveis por esta tarefa.

Segundo Mircea Eliade, um dos mais influentes estudiosos da religião do século XX, não apenas em culturas específicas (como a israelita), mas em todas as demais (mesmo que com centros e/ou objetos de adoração diversos), o templo, ou melhor, as hierofanias (algo de sagrado que se nos revela), representam para os povos (que podem ou não variar em termos de desenvolvimento cultural), uma ruptura no espaço cósmico (mundo), fato que provoca uma separação (limiar) entre o espaço sagrado e o profano. Daí a importante posição que os centros de adoração ocupam na identidade cultural de todos os povos, pois, o homem religioso (em todos os tempos) é sedento do ser (sagrado). Eliade vai mais longe ainda em seu pensamento a respeito da posição do sagrado na vida dos povos ao dizer que “é graças ao templo (a manifestação do sagrado) que o mundo é ressantificado em sua totalidade”.

“Uma vez perdido contato com o transcendente, a existência no mundo já não é possível”, por causa disso, o templo é tão importante, pois, denota singularidade num mundo onde “o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser” (Eliade).

Vislumbrado a importância do local de adoração para implementação da identidade cultural dos povos, passemos outra vez a analisar o texto extraído do Livro do Profeta Zacarias. Ele diz, “não por poder, mas pelo Espírito”. Com esta sentença, conforme mencionei acima, percebemos a semelhança entre o pensamento de Zacarias e o tratar de Jesus em relação à mulher samaritana. No diálogo que estamos analisando (Jo 4.1-42), ficou óbvio que o Mestre sempre procurou esclarecê-la através da atuação maravilhosa do Espírito Santo, e nunca, através do poder de sua possível “ascendência cultural”, ou de qualquer outro meio que não fosse pelo Espírito; fato que não somente válida, mas também especifica o teor da comunicação em contexto intercultural, o qual seria, “Pregai o Evangelho”. Além disso, tanto um (Isaías) como outro (Jesus) procuravam a “Reconstrução do Templo”, todavia, este que agora era pregado pelo Senhor Jesus, não seria reconstruído por mãos humanas (At 17.24), mas, a semelhança do primeiro, seria o local de habitação do Espírito de Deus (I Co 3.16; 6.19). Jesus estava nos revelando que cada ser humano (desde que presente em seu Corpo (Rm 8.9) seria Templo e morada do Espírito Santo, fato que expandiria o “local de culto” e ressantificaria (reorganizaria) um mundo que jaz no maligno (I Jo 5.19). Jesus implementava a “otimização” da luta contra o caos através de embaixadas (Templos Humanos) espalhadas por todo o mundo, as quais, representariam a presença d’Ele em todo lugar e funcionariam como uma tocha acesa em meio à escuridão, como o sal que não permitiria que o mundo de resto apodrecesse. Jesus comissionava a humanidade para que, com a mensagem supracultural do evangelho, funcionassem como “A Solução para o Caos!”.

Uma vez compreendida a relação entre o texto de Zacarias e a nova proposta de Jesus em relação ao “Templo”, voltemos ao texto do Evangelho de João.

Ora, percebemos a relevância da “abordagem contextualizada” de Jesus através do progresso conseguido em tão pouco tempo de conversa. Lembre que no princípio do diálogo, conforme mencionamos, a mulher começa por tratar ao Senhor Jesus tão somente como um simples judeu. A seguir, após mais um momento de conversa ela já o trata como Senhor, e por fim, ponto que da início a análise do diálogo neste segundo momento, ela o chama de “Profeta”.

Neste ponto, voltemos ao texto.

“Senhor, disse-lhe a mulher, vejo que tu és profeta” (V19). Essa foi à resposta da samaritana após a breve e esclarecedora observação do Mestre a respeito de sua vida particular. Jesus, em seu comentário, toca num ponto delicado da vida daquela mulher (sua situação conjugal) e a faz perceber a singularidade de sua pessoa. Como a postura assumida por Jesus denotava uma poderosa autoridade espiritual (algo raro naquela região), a mulher não perdeu tempo, e numa última tentativa de fazer surgir do coração de Jesus o possível “leão cultural” até então “adormecido” (fato que justificaria o questionamento, e que no “pensamento da mulher” revelaria de uma vez por todas o caráter de Jesus), fez o seguinte comentário, na esperança de super aguçar até o mais comedido de todos os judeus, “Nossos pais adoravam neste monte; vós, entretanto, dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar” (V20).

Obviamente ela estava muito interessada em ouvir a opinião de Jesus a respeito desta “disputa cultural” que ao longo dos anos já contava com a morte de inúmeras pessoas que, em seu zelo desmedido, já haviam ultrapassado todos os limites possíveis (Josefo). A grande questão em torno deste tema seria: Afinal, qual dos dois montes realmente seria o mais santo, Gerisim ou Ebal? Com esta indagação, a samaritana achava que estava preparada a arena para mais uma batalha entre uma e outra cultura. Mas, inevitavelmente, ela mais uma vez ouviu uma poderosa resposta de Jesus.

“Disse-lhe Jesus: Mulher, podes crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são esses que o pai procura para seus adoradores. Deus é Espírito, e importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade” (V 21-24).

Desde muito antes e, a época deste diálogo, à “supremacia cultural” de cada povo estava intimamente relacionada à área de atuação que o seu deus controlava e ao poder de que este deus dispunha para, em tempo oportuno, livrar o povo que o adorava de possíveis inimigos (e ainda não é?). Quem possuía o deus mais poderoso inevitavelmente era o povo mais poderoso, e essa particularidade norteava toda a vida social em praticamente todas as culturas. A intenção dos samaritanos era se tornar melhor que os judeus por serem o povo que detinham o verdadeiro local de “atuação e habitação” do Senhor (o templo de Gerisim), enquanto que os judeus pensavam exatamente o contrário (com seu templo no Ebal, Jerusalém). Percebe-se então, que com esta pergunta, o objetivo da samaritana era reacender a chama desta disputa.

Todavia, segundo Champlin, “a resposta dada por Jesus declarou a abolição da adoração sectarista, a derrubada de bandeiras religiosas, a remoção de reivindicações rivais do meio da adoração verdadeira, sem importar se essas reivindicações são judaicas ou samaritanas. O verdadeiro centro da adoração não era nem um monte e nem um templo, mais sim, uma pessoa – O Cristo”.

Cristo teria a missão de remir “pessoas de todos os povos” (Ap 5.9-10), o que “seria suficiente para destruir todas as barreiras que os homens teriam construído para satisfazer o seu orgulho nacionalista” e sectarista. A resposta de Jesus apontava para uma adoração que não precisaria de bandeiras, que não estaria restrita aos templos suntuosos construídos pelos homens, que viria como a mais poderosa resposta às barreiras culturais que separavam os povos e funcionaria como o mais poderoso símbolo da unidade, pois, os seus adoradores estariam todos habitando num mesmo corpo, reunidos em um único propósito; o qual seria, Adorar ao Deus todo poderoso de maneira que os pressupostos culturais não mais os separariam, pois, adorariam em “Espírito e em verdade”.

Jesus transferia a autoridade (criada pelos homens) dos templos construídos em todas as culturas e a depositava sobre a vida das pessoas (esse é o sentido de reconstrução fomentada por Cristo a que me referia acima), acabava com os entreveros culturais que visavam supremacia e nivelava todos os homens a unidade (transformando-os em embaixadores do céu).

Ele disse: “Deus é espírito”. Com esta sentença, Ele afirmava que Deus não estava sujeito às estruturas, as formas, aos tipos, as cores, aos ritos, aos costumes ou a qualquer outro tipo de capricho humano. Segundo Champlin, o fato de Deus, conforme citação de seu Filho, “não possuir corpo físico, subtende, sim, até mesmo requer, que ele seja adorado de maneira não corpórea (não quero dizer com esta citação fora do corpo e sim sem a necessidade de estruturas humanas)”. Jesus descortinava diante daquela mulher uma verdade sempre presente nas Escrituras, mas até então mal compreendida pelos homens, uma realidade espiritual que estava acima de todas as culturas, um Evangelho supracultural.

Com esta belíssima declaração, Jesus procurou retirar do homem toda reserva cultural que tanto o afligia, direcionando de uma vez por todas o foco de nosso verdadeiro ataque, o qual não poderia ser melhor definido se não nas palavras inspiradas do Apóstolo Paulo, “porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes” (Ef 6.12). E trazia, segundo Bosch, os outrora não-humanos samaritanos a romper com o fundamentalismo judaico tradicional. Saciava dentro do homem, a sede do ser.

A última resposta dada pela mulher samaritana em nada tem haver com as primeiras. Ela não foi evasiva ou procurou desviar o foco da conversa através de seu sarcasmo. Mas, conforme Jesus pretendia desde o princípio, ela desvendara algo de melhor que havia em seu ser, e, numa resposta que denota uma profunda reflexão mística e religiosa em tudo quanto vinha sendo exposto por Jesus, ela replica: “Eu sei, que há de vir o Messias, chamado Cristo, quando ele vier, nos anunciará todas as coisas” (V 25). Este “nos anunciará”, plural, que englobava nas palavras da própria samaritana até os inditosos judeus (pelo menos até agora), já nos descortina algo que fluía desde o mais profundo do seu ser, algo que denotava uma transformação não antes possível à mente mais otimista, um homem, enviado pelo Deus Todo Poderoso, que, até aos olhos da sectária samaritana, poderia por termo a esta nefasta barreira que os separava.

É fato conhecido que a adoração samaritana baseava-se tão somente na Torá, o conjunto de cinco Livros da Lei judaica escritos por Moisés. Jesus sabia que a mulher que conversava com Ele, e que ansiava pela revelação do Messias, conhecia muito bem cada sentença contida em cada um daqueles livros, principalmente as que faziam menção ao tão conhecido diálogo entre Jeová e Moisés, quando este era comissionado a libertar o povo das mãos de Faraó. Assim, numa sentença que serviu como um divisor de águas na vida daquela humilde mulher, Jesus, em alusão à resposta dada por Deus em referência a sua identidade indagada por Moisés, asseverou nas mesmas palavras tão caras ao coração daquela mulher: “Eu Sou, eu que falo contigo” (V 26). Segundo Timóteo Carriker, a utilização por parte de Jesus do nome “Eu Sou”, sugere uma presença salvífica que, no próprio nome, Jesus pode ousar e aceitar em usar como dele próprio”.

Diante disso, a reação da samaritana esboçada num misto de espanto e alegria estampados em seu rosto pálido era algo tão patente, que os discípulos que acabavam de voltar de sua épica viagem a Sicar, não ousaram perguntar o que estava acontecendo, embora estivessem espantados de Jesus estar conversando com uma mulher, “e pior” samaritana.

A mulher, maravilhada com o que se realizara em sua vida (graças ao Evangelho contextualizado pregado por Jesus), abandonou o seu cântaro junto à fonte, e a plenos pulmões voltou a Sicar, gritando a quem encontrava pelo caminho, “Vinde comigo e vede um homem que me disse tudo quanto tinha feito. Será este, por ventura, o Cristo? Saíram, pois, da cidade e vieram ter com ele” (v 29-30).

Neste ponto, gostaria de abrir um pequeno parêntese e comentar um pouco da intenção de Jesus em enviar os discípulos a Sicar. O mesmo orgulho que precisava ser trabalhado na vida da samaritana, precisava também ser arraigado da vida dos próprios discípulos. Assim, Jesus, entrevendo o que aconteceria numa exótica visita destes a uma cidade samaritana, sem delongas, os enviou. Imaginemos a cena dos discípulos numa das “bodegas” samaritanas tendo que conversar com o comerciante? Imagine ainda os semblantes de ambos, judeus e samaritanos, se entreolhando pelas ruas empoeiradas da humilde cidade? Não seria preciso tanta imaginação para divisarmos os semblantes carregados num misto de reserva e repulsa, que os impelia a, o quanto antes, deixar aquela inditosa cidade e retornar, “incontaminados”, a presença do Mestre.

O fato é que, enfim eles retornaram: “Nesse ínterim, os discípulos lhe rogavam dizendo: Mestre, come! Mas ele lhes disse: Uma comida tenho para comer, que vós não conheceis. Diziam, então, os discípulos uns aos outros: Ter-lhe-ia, porventura, alguém trazido o que comer?” (V 31-33).

Jesus, através da visita realizada pelos discípulos, procurava “abrir-lhes os olhos” para necessidade de perceberem seu ministério transcultural. Queria fazer com que os mesmos percebessem nos samaritanos vidas que precisavam das Boas Novas trazidas pelo Mestre, todavia, eles não compreenderam esta sublime verdade, que como sempre, estava sendo ensinada por Jesus nas entrelinhas de sua vida cotidiana. Com as palavras “uma comida tenho para comer, que vós não conheceis” em resposta a pergunta feita pelos discípulos, Jesus nos deixa isto muito claro. Poderíamos conjecturar as palavras de Jesus: “vocês ainda não conhecem minhas verdadeiras necessidades, o teor da minha missão”.

Ora, conforme percebemos em toda narrativa a respeito da missão do Cristo, a ambição deste sempre foi cumprir sua missão pré-estabelecida pelo Deus Pai, a qual seja se revelar ao homem conduzindo-o a reconciliação eterna. Observe: “A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra”. E, nesta obra de restaurar o homem a presença de Deus, os samaritanos, sim, “até eles”, para espanto dos judeus, estavam também inclusos. Algo que foi poderosamente expressado pelo Senhor Jesus num dos exemplos mais bonitos de toda a narrativa bíblica.

Lembre-se que a mulher samaritana tinha abandonado o cântaro e corrido para anunciar aos seus conterrâneos o encontro que tivera com o Cristo, pois é, ela tinha logrado êxito em seu “frenético evangelismo” e uma multidão a acompanhava para ver de fato o que estava acontecendo. É neste ponto que Jesus reúne os discípulos em torno de si e nos dá um profundo exemplo da importância contextual do Evangelho para sua perfeita compreensão: “Não dizeis vós que ainda há quatro meses até à ceifa? Eu, porém, vos digo: erguei os olhos e vede os campos, pois, já branquejam para a ceifa”.

Os samaritanos, vindo ter com Jesus, no movimento natural do caminhar, mais pareciam com um campo de trigo quando açoitado pelo vento. Jesus se utilizou desta semelhança para criar uma ponte que melhor permitisse aos discípulos compreender o que Ele estava dizendo. Ele dizia, Levantai os vossos olhos, olhem para os samaritanos que caminham até nós, vocês não dizem que eles não estão maduros (não são dignos) para o Reino de Deus, eis que Eu vos digo, observem melhor, pois, os campos (os samaritanos) já branquejam para ceifa (procuram desesperadamente a salvação). Que exemplo belíssimo! Agora eles entendiam o porque de viajar por caminho, outrora, tão inditoso; entendiam o porque do convívio provocado por Jesus quando os enviou a Sicar; entendiam porque Jesus, para escândalo de qualquer “Rabino”, estava conversando com uma mulher samaritana. A resposta agora era óbvia: Os samaritanos também faziam parte do Reino de Deus!

Nos versículos que seguem (36-38) o Senhor continua por ensinar a matemática da ceifa, os trabalhos realizados pelo que lança semente (evangeliza em solo ainda não semeado) e do colhe o fruto de seu trabalho (aquele que acolhe os que reconhecem a Jesus como Senhor) mostrando que tanto um como o outro, entesouram para a vida eterna. No caso, a samaritana havia plantado, e dentro em breve, eles estariam colhendo. Isto sim é uma aula de cristianismo!

“Muitos samaritanos daquela cidade creram nele”. Tanto o testemunho da mulher, como o convívio com Jesus e os discípulos, agora sim comunicadores, contribuíram para que muitos recebessem a Cristo como Salvador e tivessem suas vidas transformadas sem prejuízo algum a sua raça, a sua história, a sua cultura. O que prova que não é o evangelista que “retira as arestas” e sim a Palavra de Deus no trabalhar do Espírito Santo.

Por fim, diante de mais este exemplo belíssimo de contextualização deixado por Jesus, não poderia encontrar melhores palavras para finalizar este artigo, senão, com as sábias palavras proferidas pelo servo do Senhor:

“A contextualização missionária é um dos assuntos vitais para a proclamação do evangelho em contexto intercultural. Sua compreensão bíblica traça a linha divisória entre uma verdadeira comunicação do evangelho e um simples compartilhar de idéias”.
Ronaldo Lidório.

domingo, 29 de novembro de 2009

JESUS E O CISMA SAMARITANO (parte 1)

Baseado no Evangelho de João 4.1-42

Desde que aprouve a Deus manifestar-se ao homem sempre ficou patente que Ele era Senhor sobre Todos os Povos. Segundo o profeta Isaías (49.6) era “muito pouco para o servo (Jesus), restaurar (apenas) as tribos de Jacó e tornar a trazer os remanescentes de Israel, (assim) Ele também é luz para os gentios, e salvação até os confins da terra”. Todas as nações são alvo da proclamação do Evangelho, cada uma delas precisa desesperadamente de luz para lhes tirar das trevas do maligno e de sabor (do sal) para as vidas que não possuem mais prazer em existir.

Foi por causa desta premissa (de que todas as culturas anseiam pela Palavra) que Jesus, mesmo desenvolvendo um poderoso ministério na Judéia, (pois fazia e batizava mais discípulos que João 4.1), retornou mais uma vez para Galiléia. É nesta viagem de volta que começa o trabalhar de Jesus para, a princípio, nos ensinar a dimensão de nossa “Paróquia”, e em seguida, arrancar de nós todo e qualquer tipo de “reserva cultural” que venha a nos impedir de comunicar o evangelho, uma vez que, "a missão de Jesus não se reduziu a cruzar barreiras geográficas. Jesus também atravessou barreiras sociais, incluindo alguns segmentos da sociedade antes negligenciados" (Carriker 2005).

Diz o texto do evangelho citado que era necessário, para se viajar da Judéia para Galiléia, atravessar a província de Samaria(V4). Ora, judeus e samaritanos se odiavam, num cisma que grassava as duas províncias desde a época que remonta o cativeiro Assírio(721 a.C.). Os assírios tinham como norma, além de retirar o povo domidado de suas terras, trazer um novo povo para ocupar a terra saqueada. Este novo povo se unia aos que, por motivo qualquer, não podiam ser exilados e formavam um novo povo. Esta “caldeação” de um novo povo trazido pelos assírios, com o que restou das Dez Tribos do Norte, deu origem a um "povo mestiço" que era poderosamente odiado pelo "puro judeu". O início desse fato se enocontra muito bem documentado no trecho de II Reis 17.24-41, vejamos:

"O rei da Assíria trouxe gente de Babilônia, de Cuta, de Ava, de Hamate e de Sefarvaim e a fez habitar nas cidades de Samaria, em lugar dos filhos de Israel; tomaram posse de Samaria e habitaram nas suas cidades. A princípio, quando passaram a habitar ali, não temeram o Senhor; então, mandou o Senhor para o meio deles leões, os quais mataram a alguns do povo. Pelo que se disse ao rei da Assíria: As gentes que transportaste e fizeste habitar nas cidades de Samaria não sabem a maneira de servir o deus da terra; por isso, enviou ele leões para o meio delas, os quais as matam, porque não sabem como servir o deus da terra. Então, o rei da Assíria mandou dizer: Levai para lá um dos sacerdotes que de lá trouxestes; que ele vá, e lá habite, e lhes ensine a maneira de servir o deus da terra. Foi, pois, um dos sacerdotes que haviam levado de Samaria, e habitou em Betel, e lhes ensinava como deviam temer o Senhor. Porém cada nação fez ainda os seus próprios deuses nas cidades em que habitava, e os puseram nos santuários dos altos que os samaritanos tinham feito. Os de Babilônia fizeram Sucote-Benote; os de Cuta fizeram Nergal; os de Hamate fizeram Asima; os aveus fizeram Nibaz e Tartaque; e os sefarvitas queimavam seus filhos a Adrameleque e a Anameleque, deuses de Sefarvaim. Mas temiam também ao Senhor; dentre os do povo constituíram sacerdotes dos lugares altos, os quais oficiavam a favor deles nos santuários dos altos. De maneira que temiam o Senhor e, ao mesmo tempo, serviam aos seus próprios deuses, segundo o costume das nações dentre as quais tinham sido transportados (...) . Assim, estas nações temiam o Senhor e serviam as suas próprias imagens de escultura; como fizeram seus pais, assim fazem também seus filhos e os filhos de seus filhos, até ao dia de hoje".

Esta intriga agravou-se ainda mais quando o Reino do Sul foi levado para Babilônia por Nabucodonozor (605 a.C.), pois, com a saída dos judeus que habitavam Jerusalém, os samaritanos (agora misturados a outras raças) obtiveram imensa liberdade, que perdurou até o surgimento de Ciro (539 a.C), quando este, ao conquistar a Babilônia, permitiu que os Judeus e seus sucessores retornassem a Jerusalém (535-445 a.C.), com ordens para a reconstrução do Templo e dos muros da cidade, fato que causou certo repúdio em alguns samaritanos, como por exemplo em Sambalate, Tobias e Gesem. Pois estes, conforme relato de Neemias, quiseram impedir o processo de reconstrução (Ne 4 e 6).

Foi o ressurgimento de Jerusalém como a cidade do Grande Rei (Adonai), que fez com que a comunicação com os “impuros” e caldeados samaritanos (na visão agora zelosa do novo judeu que voltava do exílio) diminuísse ainda mais, fato que provocou uma multiplicação da imensa rivalidade já existente.

Na tentativa de melhor expormos esta disputa cultural, e a proporção calamitosa que tomou, pouco poderíamos somar ao comentário de Enéas Tognini (1980):

"Maior se tornou à rivalidade quando Esdras (Es 9, 10) admoestou os sacerdotes a deixarem as mulheres estrangeiras. Muitos deles não aceitaram o conselho de Esdras. Um desses sacerdotes era genro de Sambalate e não querendo repudiar a mulher foi abrigar-se em Samaria e seu sogro prometeu-lhe construir um templo em Gerisim e ele seria lá, não mero sacerdote, mas Sumo-Sacerdote. Aceitou a proposta. O templo foi construído e ele investido na sua função. O ódio cresceu ainda mais quando João Hircano (130 a.C.) destruiu o templo de Gerisim. Herodes, o grande, construí-lhes outro templo (25 a.C.); não lhes agradou, nem mesmo chegaram a usar, por não ter sido construído no monte Gerisim. De tal maneira se acentuaram as rivalidades, que os judeus consideravam os samaritanos como cães. Os samaritanos eram imundos para os judeus. Não tinham o mínimo acesso ao Templo de Jerusalém..."

Com este breve panorama histórico do ódio que separava judeus e samaritanos, percebemos a “ousadia” de Jesus em não viajar pela Peréia, como costumeiramente faziam os viajores judeus para não passar por solo samaritano, antes, viajando justamente por Samaria. Assim, diante desta decisão, eu até imagino a disposição dos discípulos quando ouviram de Jesus qual seria o seu intinerário, talvez eles até tentaram dissuádi-lo, mas não lograram êxito. Que lição maravilhosa de que não se trata de quem queremos evangelizar e sim de quem precisa ser evangelizado! De que não importa a dificuldade cultural, os empecilhos físicos, temporais e espirituais, pois, para o nosso Senhor Jesus “uma alma vale mais que o mundo inteiro!”.

Em chegado a Samaria, o sol assumia sua posição mais imponente, o calor por aquelas paragens era exorbitante. Numa atitude que denota perfeitamente sua humanidade, Jesus, já próximo de uma das cidades samaritanas chamada Sicar, assentou-se junto à Fonte de Jacó para descansar. “Nisto veio uma mulher samaritana tirar água. Disse-lhe Jesus: dá-me de beber”(V7).

Antes de entrar no mérito do diálogo no mínimo exótico que se iniciava, gostaria de chamar-lhes atenção para a sentença seguinte: “pois os discípulos tinham ido a cidade comprar alimentos”(V8). Ora, já era fato digno de nota um grupo de judeus estar em pleno solo samaritano, como se não bastasse, Jesus, indo mais além em sua tentativa de “abrir os olhos” dos discípulos, os impele a ir até uma “cidade samaritana”. Não é difícil imaginar os comentários que regavam aquela caminhada tão difícil: “Só vamos porque é ordem do mestre!”. O fato é que Jesus estava prestes a trabalhar o caráter daquela mulher samaritana, ensinando-a que Ele é senhor sobre todos os povos, entretanto, simultaneamente, Ele queria a mesma coisa para os seus discípulos, pois, era notório que aquela barreira cultural também os afligia e infelizmente concorria para não comunicação do Evangelho. Ora, isto Jesus nunca permitiria, pois, não importando as insólitas questões culturais que separam os homens, o evangelho jamais poderá sofrer com isso, pois, ele é supracultural, urgente a todos os povos. E os discípulos, mas do que ninguém, precisavam entender esta verdade! (A continuação veremos na parte 2)

Continuando, a barreira cultural a que me referi, e que expressa muito bem o ódio que se nomeava entre aquelas duas culturas, fica patente na declaração da orgulhosa samaritana: “Como sendo tu judeu, pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana?”(V9). Observe que ela faz pouco caso de Jesus, e numa sentença rápida trata-o friamente como um “simples judeu”. Todavia, a resposta de Jesus, como sempre, provoca uma reação inesperada: “Se conheceras o dom de Deus e quem é o que te pede: dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva”(V10). Estas palavras caíram como que um raio no coração daquela mulher, algo que fica óbvio, observando-se sua resposta: “Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva? És tu, porventura, maior que Jacó, o nosso pai, que nos deu o poço, do qual ele mesmo bebeu, e, bem assim, seus filhos, e seu gado?”(V11-12).

A princípio, como tínhamos mencionado, aquela mulher referiu-se a Jesus apenas como judeu (iudo), entretanto, quando Jesus a olhou e disse que se ela ao menos soubesse do presente que estava prestes a receber, e quem era que falava com ela, ela não estaria naquele “pedestal”, mas, estaria disposta a assumir a posição de serva e lhe pediria à água que lhe beneficiaria eternamente. Ao ouvir isso a mulher já não responde de maneira evasiva, mas, (mesmo surpresa pelo fato de um homem, e este judeu, estar conversando com ela), por causa da autoridade e amor com que Jesus lhe respondeu, ela retruca, senhor (kurios) tu não tens com que tirar – a astúcia aqui é algo impressionante, ela via em Jesus um homem diferente, porém, as experiências passadas não a permitiam uma confiança mais fácil, e num tom sobremodo sarcástico indaga a Jesus a respeito de sua total “desprovidade de ferramentas” para lhe dar a água de que falara; lembrando-lhe ainda do possível risco em que incorria ao, de certa forma, procurar se igualar a Jacó, o idealizador daquele tanque.

"Talvez" passasse pela cabeça daquela orgulhosa mulher: “ora, ele não tem balde, nem corda, nem carrega nada consigo. Como pode ele me prometer algo de que não dispõe de meio algum para cumprir?” E num insigth finalizou: “com certeza ele procura me ludibriar, para só assim, conseguir a água de que precisa”. Mal ela havia finalizado seu pensamento, Jesus a responde com a precisão de um exímio cirurgião que de maneira precisa abre caminho para o seu objetivo: “Quem beber desta água tornará a ter sede; aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna”.

Que maneira humilde de responder a mulher, que este que agora falava, era superior a Jacó!

Mas, ao que perece, além de cética, aquela mulher sofria de “sarcasmo crônico” (salientando ainda que ela mal podia engolir a simples presença de Jesus, lembra-se, ele é judeu) e sem perca de tempo retruca: ”Senhor, dá-me dessa água para que eu não mais tenha sede, nem precise vir aqui buscá-la”(V15). Em todo o relato que se tem até aqui, a samaritana jamais se abriu ao diálogo, mas sempre se posicionava numa posição em que observava ao Senhor Jesus do alto, sobre os auspícios de sua enorme altivez e de seu zelo samaritano. Agora, todavia, ela pedia a Jesus esta sublime água de que o mesmo falara, e numa sentença digna de nota (como sempre) Jesus, sem delongas, a tira de seu infortúnio pedestal, mostrando-lhe a urgência de uma novidade de vida, e ao mesmo tempo, mostrando-lhe que sua cultura, mesmo tida em tão alta estima, no que diz respeito a sua vida eterna, não lhe beneficiara em nada, como rapidamente ela percebeu com esta ordenança: “Vai, chama teu marido e vem cá”(V16).

Segundo Champlin (2002), uma conversa que visava um simples copo com água era algo corriqueiro entre viajante e nativo (mesmo este sendo uma mulher. vide Jó 22.7, Pv 25.21), entretanto, para qualquer outro tipo de negócio (no caso Jesus era quem oferecia a água) um homem (que detivesse autoridade sobre a mulher) deveria se fazer presente. Jesus conhecia muito bem esta tradição, bem como a situação conjugal daquela mulher, que não era das melhores (uma sábia pergunta física e espiritualmente). Ora, sendo Jesus o próprio Deus, ele sabia exatamente a real situação da samaritana, contudo, o simples examinar das circunstâncias que norteavam a conversa já bastariam para esclarecer que ela passava por algum tipo de infortúnio (contextualização crítica). Vejamos, era ora sexta, como dizemos aqui no Nordeste “O Pingo do Meio-Dia”, quando os raios solares caem quase que perpendicularmente ao continente, a hora mais inóspita de todas para um serviço como o que ela estava desenvolvendo. Mas, por que ela estava ali? Com certeza, conforme tradição cultural da época, sua vida conjugal inadequada a separava do convívio comum com as demais mulheres, por isso, ela não vinha ao poço junto com as outras como era comum naquelas paragens (Champlin 2002), mas, sozinha, condoendo-se em seu presente obtuso.

Após esta pergunta contundente, enfim a verdade brota dos lábios da mulher: “Não tenho marido”. Ao que lhe respondeu Jesus com a autoridade de sempre: “Bem disseste, não tenho marido; porque cinco maridos já tiveste, e este que agora tens não é teu marido; isto disseste com verdade”(V17-18).

Ora, a mulher pediu a Jesus a água da vida, com esta resposta Jesus começara a “cavar o poço”, ou seja, trabalhar o seu caráter, que por sua vez, se encontrava simbolizado no solo pedregoso do seu coração! Com a expressão cavar o poço (para melhor compreensão), perceba que eu quero dizer que Jesus procurava abrir os olhos da mulher para sua real situação (contextualização), não se tratava de supremacia cultural, de um simples capricho humano, mas do seu futuro eterno. A comunicação do evangelho para salvação daquela mulher sempre foi o objetivo de Jesus em toda esta conversa. Algo que ficou muito bem comunicado nas palavras de Champlin (2002):

"Jesus tocou na ferida de sua vida, expondo aos seus olhos a culpa, e isso foi o primeiro passo concreto para cura de sua alma. Mediante um lance de olhos profético em sua vida privada tão vergonhosa, que após cinco casamentos sucessivos culminara em sua atual relação ilegítima, imediatamente ele afetou a consciência dela e desafiou a fé que ela deveria depositar nele. A convicção de pecado é a primeira condição indispensável para o perdão e é mesmo o princípio da conversa".

Neste primeiro momento, o que precisa ficar claro é que Jesus, em momento algum perdeu tempo com comunicação de cultura (Lausanne 1978), muito pelo contrário, a despeito das investidas preconceituosas da mulher, Jesus preocupou-se apenas em comunicar o evangelho de maneira pertinente e significativa, em parâmetros culturais que fizessem sentido a sua cosmovisão, e que a fizessem compreender a profundidade da mensagem de maneira simples, pois, esta é a atividade fim de toda e qualquer empreitada missionáia relevante.
Conforme continuaremos a ver.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

BASES BÍBLICAS e HISTÓRICAS da CONTEXTUALIZAÇÃO.

Por causa da premissa de que tudo que aponta "inovação" gera no indivíduo certa reserva, embora a contextualização não se coadune a esta acertiva(nem seja algo novo, se bem que o termo que a define seja recente), nada melhor que um comentário bíblico e histórico, para aplacar esta penumbra inditosa que, por vezes, tem arrefecido o engajamento de alguns e dificultado a comunicação da mensagem. Fato que não ocorreria se o conhecimento a muito difundido fosse realmente ensinado, observe:

O maior exemplo de Contextualização, sem dúvida alguma, nos foi deixado por Jesus Cristo. Filipenses 2.5-7 nos diz:

” Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana”.

Jesus era o próprio Deus, o Filho Unigênito do Pai, o Messias salvador do mundo. Todavia, para que as pessoas tivessem condições de melhor compreender a importância do evangelho, aprouve a ele comunicar a mensagem, trabalho, Palavra e desejo de Deus de forma fiel, significante e aplicável nos distintos contextos, sejam culturais ou existenciais . Através de sua “encarnação” Ele proporcionou a si mesmo plenas condições de comunicar sua mensagem de teor divino em parâmetros culturais humanamente inteligíveis e relevantes. Deixando-nos o maior desafio de estudo e compreensão quando tratamos da teologia da contextualização .

Acerca do modelo de contextualização deixado por Jesus, bem como o ensino que Ele nos proporcionou, vejamos o que Burns (2007), nos diz:

A vinda de Jesus Cristo em corpo humano é o maior exemplo na história de contextualização. Filipenses 2.1-11 descreve como Ele deixou Sua posição, Sua glória, Sua “pátria” e consentiu em ser humano, de carne e osso, sentindo sede, fome, cansaço e dor. Andou nas estradas poeirentas da Palestina, falando com os discípulos e com as multidões, operando milagres e livrando da opressão humana e demoníaca. Ele morreu como um criminoso comum, rejeitado e objeto de escárnio e maldição (2007, p. )

Através deste exemplo temos uma noção da profundidade que foi a Contextualização experimentada por Cristo. Ele verdadeiramente pensou, sentiu e agiu como um ser humano, para que tivesse plenas condições de amá-lo, entendê-lo e salvá-lo em seu próprio contexto, através de sua própria cultura. Burns (2007), diz que: “Deus veio em Cristo na encarnação, em uma identificação profundíssima com a humanidade e atravessou o abismo da separação entre os dois”. Através de toda sua iniciativa contextualizada, Jesus comunicou e foi plenamente compreendido, deixando que os seus discípulos, e conseqüentemente a igreja, transformados e capacitados, fossem agentes de Deus no mundo . Seguindo seu próprio exemplo.

Uma vez compreendido o exemplo deixado por Cristo e na iminência de continuar a obra por Ele deixada e ordenada, uma nova geração de comunicadores contextualizados precisou surgir para dar continuidade ao trabalho. Segundo Burns (2007), “uma parte importante no processo de contextualização é a formação de novos líderes e o desenvolvimento dos dons de cada pessoa nas igrejas”. Para que o missionário possua plenas condições de comunicar a mensagem, ele precisa, antes de tudo, transformar a sua própria realidade (cosmovisão), para só então criar comunidades missionárias perfeitamente influenciadas sobre a verdadeira realidade de um discípulo. Tendo isso em mente, observemos o exemplo de Cristo:

Para tal, Jesus conviveu com os primeiros apóstolos, incluindo-os no Seu encontro com os males deste mundo. Ensinou constantemente por meio de parábolas que os obrigassem a pensar, e ensinou por meio de perguntas e correções de atitudes egoístas e destrutivas da nova comunidade a ser construída. Tinham que aprender humildade, coragem, discernimento e toda uma compreensão e aplicação prática das Escrituras, tratadas por Jesus como a verdade absoluta de Deus. (Burns, 2007, p.36)

Este processo de tornar os discípulos verdadeiros comunicadores enfim tornou-se pleno com a chegada poderosa do “Espírito Santo” que verdadeiramente transformou suas vidas capacitando-os para obra de comunicação contextualizada do evangelho, conforme vemos no relato de Lucas em Atos 1.8 “mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra”. A partir deste evento maravilhoso os discípulos estavam perfeitamente equipados para dar continuidade há obra maravilhosa de evangelização encabeçada por Jesus.

Mesmo com o Espírito Santo atuando poderosamente na vida dos discípulos, os mesmos não ficaram desobrigados de comunicar o evangelho de forma contextualizada, muito pelo contrário, o Espírito Santo os impulsionava a seguir pormenorizadamente os passos de Cristo, o maior exemplo de contextualização. Ou seja, os discípulos estavam plenos do Espírito, mas, ainda inseridos em sua cultura e momento histórico. Acerca desta verdade, vejamos o que diz Burns (2007):

Os missionários do Novo Testamento não eram perfeitos, como podemos constatar em vários textos, mas eles optaram, sim, por uma caminhada de fidelidade a Deus, que levou a maioria deles a uma morte dramática. Por causa da convicção de que Jesus é o único caminho e a única verdade, eles deram as suas vidas em amor e fidelidade e fim de cumprirem a “Grande Comissão”. (2007, p. 36).

Uma vez percebida a presença marcante da Contextualização, tanto no ministério de Cristo quanto no de seus discípulos, vejamos alguns exemplos, através da história do cristianismo, de homens que à semelhança dos mesmos, compreenderam a dimensão dessa Identificação com a humanidade, fato que entendemos como uma perfeita “Contextualização” .

Começamos com o exemplo deixado pelo Apóstolo Paulo. Apesar de sua formação farisaica, ele compreendia muito bem todas as reminiscências do mundo gentio, uma vez que foi criado fora dos círculos de Jerusalém. Esta combinação entre conhecimento das Escrituras e crescimento num contexto transcultural foi o que contribuiu em muito para sua carreira missionária. Nas palavras de Burns (2007), “ele podia escrever aos Coríntios que estava pronto para se tornar “fraco para com os fracos” e escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível” (I Co 9.19 e 22). Seu maior objetivo era comunicar o evangelho de forma contextualizada a todos quantos fosse possível, mesmo que para isso ele tivesse que abrir mão de sua própria vida “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo, na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2.20), fato que se torna ainda mais claro numa declaração como esta. Um exemplo poderoso de identificação com Cristo e por conseguinte com sua mensagem.

Paulo queria que as pessoas conhecessem o único e verdadeiro Deus através de Seu Filho, que veio para se oferecer em sacrifício para a humanidade separada de Deus pelo pecado e desobediência (Burns 2007). Ele procurava através do amor comunicado por Deus expor a toda a humanidade a salvação que há em Cristo, de forma que a mensagem transformasse não só o indivíduo, mas toda a sociedade e o mundo. Ele pregava não só uma nova realidade espiritual em Cristo, mas, uma nova sociedade de pessoas regeneradas e aptas para dar prosseguimento à ordem de Jesus:

“É-me dado todo o poder, no céu e na terra. Portanto, ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo; Ensinando-as a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco, todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mt 28.18-20).

Para que as pessoas compreendessem a dimensão dessa obra maravilhosa elas precisavam de um ensino claro, objetivo e teologicamente fundamentado. Precisavam compreender exatamente o que Cristo tinha comunicado, mas em sua própria cultura, para transformar sua própria realidade. Precisavam de um ensino contextualizado, sendo este proporcionado em toda sua extensão pelo Grande Apóstolo dos Gentios “Desde agora, ninguém me inquiete; porque trago no meu corpo as marcas do Senhor Jesus” (Gl 6.17).

Mesmo sendo grandemente estendida, a expansão do Reino de Deus não parou com a ação de Paulo e dos demais discípulos no relato do Novo Testamento, absolutamente, continuou, e produziu frutos poderosos através da história cristã. Continuemos, portanto, a contemplar alguns desses exemplos.

Guilherme Carey, “Pai das Missões Modernas”, deixou-nos outro bom exemplo de contextualização. Carey foi um homem à frente de seu tempo. Mesmo enfrentando problemas desde sua chegada à Índia, país que se propôs evangelizar, jamais recuou nem ao menos um centímetro de seu objetivo, que era ganhar aquela nação para Cristo. O temperamento, bem como a visão evangelística super aguçada de Carey, podem ser facilmente detectados nesta declaração de George (2007):

Carey preocupava-se com justiça social, igualdade e amor(...)
Esta atitude naturalmente se repetiu em sua oposição ao sistema de castas na Índia. Assim, quando um indiano era batizado e admitido à primeira participação da ceia do Senhor, a casta tinha que ser quebrada, algo que em Sarampore não impediu o sucesso do trabalho de Carey e o crescimento da igreja (600 batismos antes de 1818). Carey foi o responsável pelo abandono do Sati (no qual as viúvas eram sempre cremadas vivas com os corpos dos seus maridos) e do infanticídio de crianças defeituosas, bem como pelo abandono da prática de deixar velhos à margem do rio Ganges para morrer (1991, p.203)

Carey utilizava-se de várias pontes para comunicar o evangelho, como a hortelagem e a astronomia, para mostrar que, ao contrário do que os hindus pensavam baseados no conceito de maya (ilusão) e da astrologia, a natureza era boa, criação do Deus soberano que ele pregava. Ele ajudou na criação de bibliotecas para que as pessoas pudessem ter acesso ao conhecimento e combateu ferrenhamente até a sua abolição o Sati . Para Carey o evangelho tinha que permear a totalidade da vida – na praça, no mercado, no laboratório e na vizinhança. Ele usava a pregação e agia de forma concreta para confrontar o domínio do hinduísmo sobre a mente e vida do povo . Numa linguagem profundamente bíblica e ao mesmo tempo culturalmente acessível, num compartilhar tão inteligível que até o indivíduo menos apercebido nas letras compreenderia.

Carey sabia que para ter uma igreja forte, ele tinha que ter líderes indianos. Por isso dedicou a maior parte da sua vida traduzindo a Bíblia e formando escolas de preparo ministerial (Burns 2007). Acerca de sua abordagem e conseqüente apologia à contextualização para comunicação da mensagem. Vejamos o trecho de uma carta que ele escreveu para seu filho, missionário na antiga Birmânia, atual Mianmar:

Pregue a infalível palavra da cruz. Não se incomode de sentar para ensinar a um nativo sozinho(...)
Cultive a melhor amizade e cordialidade possível [com os nativos], como seus iguais, e jamais deixe que os nativos percebam orgulho e superioridade de europeu na casa da missão em Rangum (Extraído de George, 1991, p. 160. Citado em Burns 2007, p. 42).


Segundo Bárbara Burns (2007):

A habilidade de Carey de contextualizar o evangelho sem comprometer as doutrinas cristãs essenciais fornece um modelo equilibrado de uma missiologia evangélica genuína, que busca ser fiel numa época de agitação social e decadência cultural” (Timothy George 1991, p. 28).

Posteriormente o Grupo Serampore, equipe missionária de Carey, escreve-nos algo que resume sua filosofia de missões em relação à contextualização. (Dizem) Que tinham que despojar tudo que aprofunda o conceito indiano contra o evangelho, cultivar os dons espirituais dos indianos, sabendo que só os indianos podem ganhar a Índia para Cristo e trabalhar sem cessar na tradução da Bíblia (Burns, 2007:42).

Por todo este trabalho primoroso, de alguém que até então, conforme a visão da época, não passava de um “simples sapateiro”. Guilherme Carey, deixou-nos um legado maravilhoso sobre o compartilhar contextualizado da mensagem o qual reúne todas as características de uma “Carreira de Sucesso”.

Hudson Taylor, à semelhança de Guilherme Carey, também queria romper com todas as barreiras que impediam o evangelho de ser comunicado em parâmetros culturais que fossem compreensíveis ao povo. Quando chegou à China, país em que desenvolveu seu profícuo ministério, percebeu que os missionários viviam nas confortáveis cidades portuárias e passavam a maior parte do seu tempo nas comunidades estrangeiras fechadas (Burns, 2007). De imediato, Taylor percebeu que todo o território que compreendia o interior da China estava quase que desprovido de missionários e que toda a sua indumentária, desde suas roupas inglesas até o seu estilo britânico, não só ofendiam, mas também afastavam os chineses. Estas informações levaram Hudson Taylor a tomar uma decisão de imensa profundidade contextual, levando seu colegas de missão a um desabono quase que completo, mas abrindo o coração dos chineses para o evangelho. A partir daquele momento ele decidiu usar roupas de estilo chinês e até permitiu que seu cabelo crescesse para que pudesse usá-lo com tranças, à fiel semelhança dos chineses. Vejamos melhor está nova abordagem de Taylor, nas palavras de Burns:

Foi viver no meio do povo, em casa simples, comendo a mesma comida que os chineses. Usava o transporte de barcos e riquinchás e diariamente enfrentava doença, perigo e ameaça, assim como os próprios chineses. Taylor e os missionários que o seguiram, mais tarde, espalharam o evangelho no interior da China e de outros países, sempre valorizando a formação de líderes nacionais e evitando a criação da dependência (2007, p. 43)

Além de todas estas atitudes estritamente contextualizadas, Hudson Taylor e sua Missão para o Interior da China (CIM), ainda desenvolveram a prática de não pagar salários ou fazer construções, pois, segundo eles, queriam fazer com que os próprios convertidos assumissem a responsabilidade de dirigir e sustentar suas próprias igrejas . Por todas estas características profundamente extraídas das escrituras e do ministério de Cristo, Taylor conseguiu fazer com que todo o interior da China compreendesse que apenas o Senhor Jesus é Deus. Comunicando o evangelho de forma que o povo chinês, de uma cultura completamente diferente da sua, bem como da que foi escrita a Bíblia, compreendesse claramente todas as verdades contidas no evangelho, tendo suas vidas e suas realidades transformadas pelo poder da Palavra, através da intervenção do Espírito Santo e da perfeita Contextualização da mensagem.

Portanto, tendo em vista a pertinente observação histórica que conseguimos com estes exemplos, bem como a perfeita fundamentação bíblica e teológica, percebemos, a perfeita comprovação da “Contextualização”, como ponte para uma perfeita compreensão das Escrituras em parâmetros culturais locais. Além disso, é fato histórico que todas as culturas que melhor compreenderam o evangelho em toda sua extensão, foram alcançadas através de abordagens contextualizadas e que as culturas que foram evangelizadas de maneira diversa não responderam positivamente ou desvencilharam-se do Caminho de Cristo nas primeiras investidas espirituais ou temporais, não atingido o objetivo a que foram desafiadas.

Por isso, a contextualização, enquanto ferramenta para compreensão do evangelho é indispensável, se o que se deseja são frutos que permaneçam para a “Vida Eterna”.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

FENÔMENO E CONTEXTO, A MENSAGEM DE PAULO EM ATENAS.

Para fundamentar nossa premissa de que para que haja comunicação intercultural eficaz é preciso que haja conhecimento cultural prévio. Vejamos um antigo relato que segundo Richardson (1995), citando um autor grego do século III a.D. , provavelmente aconteceu em alguma época, durante o sexto século antes de Cristo, numa reunião do Conselho da Colina de Marte (Acrópole). Uma praga cruel grassava a já mundialmente conhecida cidade de Atenas. Segundo o autor, o conselho da cidade se reuniu para deliberar a respeito de uma possível solução para este calamitoso problema. Diz a história que para isso, eles consultaram o Oráculo de Pítias (na pessoa de uma sacerdotisa), e que este lhes ordenou que procurassem em Cnossos, na Ilha de Creta, por um certo Epimênides, este, teria uma resposta para o terrível problema. O escolhido para ir ao encontro de Epimênides foi Nícias, um dos membros do conselho. Nícias, imediatamente empreendeu viagem e dentro de pouco tempo já se encontrava em contato com Epimênides, que prontamente atendeu seu pedido, e sem delongas, viajou com Nícias de volta a Atenas. Epimênides ficou estupefato com a grande quantidade de deuses que já amontoavam os dois lados da estrada que levava ao Porto de Pireu. Outras centenas adornavam uma montanha rochosa, a conhecida Acrópole, onde uma geração mais tarde, os atenienses construiriam o Paternon.

Diz à história que Epimênides dispensou as honras e logo tratou de comunicar aos atenienses que no dia seguinte, bem cedo, lhe conseguissem um rebanho de ovelhas, um grupo de pedreiros e uma grande quantidade de pedras e argamassa e que levassem tudo para o pé da Acrópole. As ovelhas teriam que ser coloridas, algumas brancas e outras pretas. As mesmas não poderiam se alimentar durante toda à noite e Epimênides certificou-os que as mesmas deveriam estar famintas. Segundo Richardson (1995), no dia seguinte tudo estava da forma como o sábio Epimênides havia ordenado. Então o mesmo alçou voz, e falou:

Sábios anciãos(...) vocês já se esforçaram muito ofertando sacrifícios aos seus numerosos deuses; entretanto, tudo se mostrou inútil. Vou agora oferecer sacrifícios baseado em três suposições bem diferentes das suas. Minha primeira suposição (...) é que existe ainda outro deus interessado na questão desta praga – um deus cujo nome não conhecemos e que não está, portanto, sendo representado por qualquer ídolo em sua cidade. Segundo, vou supor também que este deus é bastante poderoso – e suficientemente bondoso para fazer alguma coisa a respeito da praga, se apenas pedirmos a sua ajuda. Invocar um deus desconhecido? Exclamou um dos anciãos. Isso é possível? A terceira suposição é a minha resposta à sua pergunta, replicou Epimênides. Qualquer deus suficientemente grande e bondoso para fazer algo a respeito da praga é também poderoso e misericordioso para nos favorecer em nossa ignorância – se reconhecermos a mesma e o invocarmos! (Richardson. 1995, p. 12).

Após este caloroso discurso Epimênides, mais uma vez alçou voz e pronunciou diante de todos os presentes a seguinte oração:


Ó tu, deus desconhecido! Contempla a praga que aflige esta cidade! E se de fato tens compaixão para perdoar-nos e ajudar-nos, observa este rebanho de ovelhas! Revela tua disposição para responder, eu peço, fazendo com que qualquer ovelha que te agrade deite na relva em vez de pastar. Escolha as brancas se elas te agradarem; as pretas se te causarem prazer. As que escolheres serão sacrificadas a ti – reconhecendo nossa lamentável ignorância do teu nome! (Richardson. 1995, p. 12).

Ora, após a oração, Epimênides sentou-se no chão, e em seguida ordenou para que as ovelhas famintas fossem soltas sobre a grama verdejante da colina sagrada. Para espanto de alguns, algumas ovelhas não pastaram, tão somente deitaram-se e descansaram sobre a relva suculenta. Segundo Richardson (1995), o cretense pediu para que as ovelhas que agiram daquela maneira fossem separadas e que no exato local onde elas se deitaram e descansaram, os pedreiros erigissem altares, um para cada ovelha que se deitou, para que, conforme o mesmo mencionou durante a oração, as mesmas fossem sacrificadas sobre estes.

Os pedreiros, havidos por se livrarem de uma vez por todas daquela terrível praga, logo trataram de fazer conforme Epimênides havia ordenado. Sendo assim, uma vez que os altares se encontravam prontos, um dos conselheiros do grupo mais jovem perguntou: Qual o nome do deus que gravaremos sobre esses altares? Epimênides, então, respondeu:

Nome? Repetiu Epimênides, como se refletindo. A divindade, cuja ajuda buscamos, agradou-se em responder à nossa admissão de ignorância. Se agora pretendemos mostrar conhecimento, gravando um nome quando na verdade não temos a menor idéia a respeito dele, temo que vamos apenas ofendê-la. Não podemos correr este risco, concordou o presidente do conselho. Mas com certeza deve haver um meio apropriado de – dedicar cada altar antes de usá-lo. Tem razão, sábio conselheiro, existe um meio. Inscrevam simplesmente as palavras Agnosto Theo – a um “deus desconhecido” – no lado de cada altar. Nada mais é necessário. (1995, p. 13).


As ovelhas em fim foram sacrificadas e na mesma noite já se percebia o recuar da praga. No decorrer de uma semana todos os doentes haviam sarado. O fato é que toda a Atenas se “encheu de louvor” ao Deus desconhecido de Epimênides . Mas, com o correr do tempo, o povo de Atenas começou e esquecer-se da misericórdia do deus desconhecido. Seus altares na colina foram completamente abandonados e os vândalos, pouco a pouco, os foram destruindo. O mato e o musgo dominaram os despretensiosos altares e inevitavelmente Atenas, mais uma vez, se viu dominada pelo panteão de deuses pagãos que se empilhavam por suas ruas de pedra e argila.

Ainda segundo Richardson (1995), dois anciãos, muito tempo depois passavam diante de um destes altares e pelo fato de terem participado de toda esta empreitada, logo se recordaram de todo o ocorrido exatamente da forma como aconteceu. Lembraram-se da misericórdia do deus desconhecido e como este foi misericordioso em livrá-los da praga. Por isso, estes escolheram um dos altares que ainda estava em boas condições e deliberaram sobre a possibilidade de o acrescentarem a lista de despesas perpétuas da cidade, como uma forma de preservar pelo menos um desses altares para posteridade, bem como a história de Epimênides, que devia ser mantida viva entre as suas tradições. Depois desta seção nostálgica, os anciãos acharam por bem, fazer como tinham combinado.

Todo este relato, conforme mencionamos, baseou-se, segundo Richardson (1995), em uma tradição registrada como história por Diógenes Laércio, numa obra clássica da literatura grega. O fato que queremos lançar luz, ao citá-la, é que muito tempo depois chegava à cidade de Atenas o Apóstolo Paulo, e este, segundo o relato de Lucas no livro de Atos, ao passar por uma das ruas de Atenas, percebeu um altar que era completamente diferente dos demais e isto aguçou sua mente iluminada pelo Espírito Santo.


Em face de tamanha idolatria, conforme expomos, o espírito de Paulo revoltava-se. Começara ele a pregar “na praça todos os dias, entre os que se encontravam ali” (At 17.17). Os que se encontravam ali eram alguns dos filósofos epicureus e estóicos os quais contendiam com ele, havendo quem perguntasse: Que quer dizer este tagarela? Outros diziam que o apóstolo parecia ser pregador de estranhos deuses. Esta última sentença aponta para o fato que Paulo utilizara Theos (palavra grega para Deus) em sua pregação. Ora, os gregos sabiam que Xenofonte, Platão e Aristóteles (três grandes filósofos) usaram Theos como nome pessoal para um “Deus Supremo” em seus escritos (Richardson 1995). Por isso, Theos era um nome familiar para eles. Sendo assim, o que lhes causou tamanha surpresa quando da pregação de Paulo? Esta surpresa pode ser entendida da seguinte maneira:

É possível, portanto, que não fosse Theos, mas o nome Jesus, pouco familiar, que tivesse levado os filósofos a pensar que Paulo estava “pregando deuses estranhos”. Eles talvez ficassem também espantados com a idéia de alguém querer introduzir mais um deus em Atenas, a capital mundial dos deuses! Em resumo, os atenienses devem ter tido necessidade de uma lista de tamanho equivalente às páginas amarelas para controlar as inúmeras divindades já representadas em sua cidade!” (Richardson 1995, p. 18).

Ora, Paulo precisava expor aos atenienses que ele não estava tentando introduzir mais um deus em seu enorme panteão. Precisava fazer com que os atenienses entendessem a singularidade do Deus o qual ele estava pregando. Mas, o que fazer? Segundo Richardson (1995), há muito Paulo já possuía a resposta, vejamos:

Jesus Cristo fornecera a Paulo uma formula-mestra para enfrentar problemas de comunicação transcultural como o de Atenas. Falando através de uma visão tão convincente que deu a Paulo novas perspectivas e tão brilhante que o deixou temporariamente cego, Jesus havia dito: ”Para os quais eu te envio, para lhes abrir os olhos e convertê-los das trevas para luz” (At 26.17-18). A lógica de Jesus era impecável. Quando as pessoas devem voltar-se das trevas para a luz, é necessário que seus olhos se abram primeiro para que possam ver a diferença entre ambas. O que é preciso para abrir os olhos de alguém? Um abridor de olhos! (1995, p. 18).

O abridor de olhos, o qual Richardson (1995) se refere, é justamente o parâmetro cultural utilizado pelo missionário, na tentativa de fazer com que os nativos (neste caso os atenienses) entendam, através de sua própria cultura, as verdades supraculturais da Bíblia. No caso que estamos tratando percebemos que Paulo era judeu, renascido cristão. Como ele descobriria, em uma Atenas infestada de deuses pagãos, um abridor de olhos para o Deus Supremo? É simples, ele teria que conhecer a cultura ateniense e através dela associar o caráter divino da mensagem a uma realidade compreensível.

Ora, Paulo conhecia profundamente a cultura ateniense, e era um exímio pregador da mensagem cristã. Por causa disso, ele não teve problemas para conseguir uma ponte para a mensagem. O parâmetro cultural que ele utilizou a muito já fazia parte da história deste povo. Paulo utilizou como “abre olhos”, para uma melhor compreensão de sua mensagem, a famosa história do “deus desconhecido”. Conforme lemos na narrativa de Atos, Paulo já havia “passado e observado” e descobriu algo “no sistema” que não fazia parte “do” sistema. Era um altar que não se associava a qualquer outro ídolo. Um altar com a curiosa inscrição, “ao deus desconhecido” (Richardson 1995). Paulo percebia através de todas estas características livres de sincretismo, algo que poderia abrir as mentes e os corações daqueles filósofos estóicos e epicureus.

O que temos em seguida exemplifica muito bem o assunto proposto, uma vez que Paulo inicia sua pregação da mesma forma como faria em qualquer outro lugar. Só que em dado momento ele “contextualiza” com os atenienses e transmite-lhes a mensagem de uma forma compreensível à sua cultura e momento histórico, retirando-lhes o véu que os impediam de ver a verdade que a muito estava latente aos seus olhos. Ele diz: “Senhores atenienses! Em tudo vos vejo acentuadamente religiosos; porque passando e observando os objetos de vosso culto, encontrei também um altar no qual está inscrito: AO DEUS DESCONHECIDO”. Após esta introdução fantástica o apóstolo continuou com uma declaração que aguardara cerca de seis séculos para ser pronunciada. E que em poucas linhas é um dos mais plenos exemplos de uma comunicação contextualizada. “Pois esse que adorais sem conhecer, é precisamente aquele que eu vos anuncio” (At 17.22-23). Com esta declaração estonteante os atenienses percebiam que o Deus pregado por Paulo de maneira alguma lhes era estranho, absolutamente, ele há muito era representado pelo singelo altar de Epimênides. Tratava-se, portanto, de um Deus que já interferira na história de Atenas. Tendo certamente o direito de ver o seu nome proclamado ali! (Richardson 1995).

Esta verdade só se tornou pertinente e significativa aos atenienses por que Paulo pregou de maneira que os mesmos compreenderam. Ou seja, Paulo pregou uma mensagem extraída única e exclusivamente das Boas Novas do evangelho, todavia, através de parâmetros culturais inerentes aos atenienses – o altar ao “deus desconhecido”. O Apóstolo só utilizou este altar como ponte, por que sabia que o mesmo estava livre de toda e qualquer associação sincrética ou pagã, pois, este não era associado a nenhum deus ateniense (ou seja, não tinha qualquer simbolização idólatra), tinha livrado os atenienses da praga há muito tempo atrás (fato que revelava seu imensurável poder e singularidade) e em nenhum momento se envolveu na história ateniense se não nestes termos (revelando ser um Deus tão poderoso que não levou em conta a ignorância ateniense). Paulo compreendia isto muito bem, uma vez que há muito já tivera contato com a história de Epimenides, fato que é comprovado através de uma citação que Paulo faz em uma de suas cartas pastorais. “Foi mesmo dentre eles, um seu profeta que disse: cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis, ventres preguiçosos. Tal testemunho é exato. Portanto, repreende-os severamente para que sejam sadios na fé” (Tt 1.12-13). Estas palavras que foram citadas pelo apóstolo, segundo Richardson (1995), se encontram em um antigo poema atribuído a Epimênides. Os membros do Areópago devem ter ficado surpresos quando descobriram ser o evangelho uma mensagem perceptiva, clara e objetiva. Isso graças a Contextualização.

Após lançar luz à mente dos gregos, Paulo continuou seu articulado discurso. Ele sabia que a mensagem cristã visava não só edificar os santos, mas também denunciar os pecadores. Com certeza as sentenças seguintes que criticavam a idolatria bem como a adoração a imagens provocaria certo desconforto aos atenienses. Mas, o verdadeiro missionário possui compromisso apenas com a verdade. E Paulo compreendia isso muito bem. A mensagem não deve ser “amenizada” para não chocar os ouvintes, muito pelo contrário, ela deve ser pregada em toda sua extensão, para só assim, provocar uma verdadeira transformação; uma genuína conversão.

Segundo Richardson (1995), Paulo só pecou em um único ponto (no que diz respeito a estar pregando para filósofos), pois, em seu acalorado discurso “ele mencionou a ressurreição do homem que Deus autorizou para julgar o mundo, sem explicar primeiro como e porque ele teve que morrer”, Fato que causou, pela primeira vez, um espaço na “lógica” de sua pregação. O que fez com que os filósofos desabonassem o restante da mensagem para seu próprio fracasso espiritual. “Quando ouviram falar de ressurreição de mortos, uns escarneceram, e outros disseram: A respeito disso te ouviremos depois noutra ocasião. A essa altura Paulo se retirou do meio deles”. (At 17.32-33).

Até mesmo um apóstolo como Paulo pode encontrar dificuldades na comunicação transcultural!

Mas, o motivo que nos impulsionou a tomar esta passagem como exemplo de mensagem contextualizada, não foi a negação dos filósofos que provavelmente não quiseram mais ouvir o discurso, por que este, a muito, já os inflamava, uma vez que combatia a idolatria e o seu orgulho à consistência racional, mas, pelo fato que “Nem todos descreram de Paulo por ter mencionado a ressurreição” (Richardson 1995). “Houve, porém, alguns homens que creram; entre eles estava Dionísio, o aeropagita, uma mulher chamada Dâmaris e, com eles, outros mais” (At 17.34). Mesmo cercados de discursos que requeriam para si autoridade divina, essas pessoas creram salvificamente no evangelho que fora pregado de forma contextualizada, o qual reuniu as condições necessárias para levá-los a uma reflexão que culminou em salvação. Por causa desta verdade, temos plenas condições de considerar a abordagem utilizada pelo Apóstolo Paulo de “uma empreitada de sucesso”. Para a Glória de Deus!

Depreende-se, portanto, que a contextualização é indispensável para a perfeita comunicação do evangelho. Uma vez que ela serve como um abre olhos, que desobstrui a mente e o coração do indivíduo para a conversão e conseqüentemente para a salvação em Cristo Jesus. Este processo requer um estudo prévio da cultura a que se destina alcançar, pois, a ponte utilizada para exemplificação da mensagem deve estar livre de toda e qualquer associação sincrética, bem como pagã, para que o indivíduo não tenha nenhum tipo de idéia equivocada da mensagem sagrada que está recebendo, nem a associe a parâmetros culturais que não se coadunem com a mensagem divinamente inspirada, à semelhança do que Paulo conseguiu em Atenas.

Por fim, sendo o mais importante. Todo este “processo de contextualização” deve, em todas as suas áreas, ser iluminado e dirigido pelo Espírito Santo de Deus. O qual convence o homem da justiça, do pecado e do juízo .

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A CONTEXTUALIZAÇÃO BÍBLICA

Temos que ter o cuidado, conforme nos fala Nicholls (1983), de não dar uma ênfase exagerada no homem e sua cultura, mas apenas naquilo que é inerente à comunicação do evangelho. Ou seja, precisamos ter o cuidado de não colocar a cultura acima da Palavra de Deus, bem como não utilizar todas as reminiscências culturais como pontes para comunicação do evangelho, uma vez que, assim como toda criação, a cultura também foi corrompida quando da queda do homem tendo áreas que louvam a Deus e outras que não, precisando-se, portanto, de critérios para comunicação da mensagem.

O termo “Contextualização” surgiu pela primeira vez nos círculos do CMI, e só depois, segundo Bárbara Burns (2007), começou a ser usado pelos evangélicos , mais precisamente, no Pacto do Congresso Internacional de Evangelização Mundial, em Lausanne, na Suíça, em 1974, que rejeitou a então postura do CMI que progressivamente aceitou o humanismo secular na sua teologia e prática cristã, bem como a um ecumenismo sem critérios bíblicos, fato que descaracterizou o cristianismo genuíno, outrora praticado e fomentou o surgimento de uma Contextualização Bíblica. O Pacto de Lausanne foi uma declaração de fé que expressou fortemente a rejeição, por parte dos evangélicos, desta descaracterização do cristianismo, que infelizmente surgiu no seio do CMI. Este documento deixa claro que o Pacto de Lausanne rejeitou o liberalismo em que mergulhou o CMI e não a idéia de Contextualização idealizada por ele. Ao contrário, esta idéia foi fortemente difundida e utilizada por Lausanne.

Conforme observamos, através do erro cometido pelo CMI, não é suficiente ter um pensamento correto no que diz respeito à comunicação eficaz da mensagem, pois, quando a contextualização é praticada sem levar em consideração os critérios bíblicos, ela perde sua essência, caindo num tipo de apologia à cultura e ao liberalismo humanista (erro do CMI) que não é, de forma alguma, a perfeita comunicação do evangelho. Acerca disso, vejamos o que Nicholls (1983), nos diz:


(Nicholls) defende uma contextualização missiológica livre das influências seculares na medida do possível. Ele denuncia os perigos do relativismo, o pluralismo cultural e teológico, e a criação de uma “etnoteologia”, ou teologia baseada na cultura. Também adverte contra a falta de contextualização, quando
o missionário impõe sua própria cultura a outros povos, sem critérios bíblicos. (1983, p. )


Não vamos nos ater aos motivos pelos quais o CMI declinou de sua correta postura doutrinária, pois este não é o nosso objetivo. Nos ateremos tão somente à postura dos evangélicos que se levantaram contra o liberalismo praticado pelo CMI, fomentando o que entendemos como uma Contextualização Bíblica.

A Bíblia é determinante para a hermenêutica e a contextualização da mensagem. Burns (2007), nos diz que mesmo a Bíblia sendo normativa para a mensagem do evangelho e para a vida da igreja, alguns grupos do CMI começaram a questionar a relevância bíblica para a modernidade, até que chegaram à conclusão que as interpretações bíblicas são condicionadas à cultura, caindo num erro catastrófico, pois, “não há como colocar a cultura em primeiro lugar ou acreditar numa Bíblia condicionada culturalmente”. A Bíblia procede do próprio Deus, é sua Palavra inspirada, livre de erros e autoridade final. Nicholls (1983), afirma que:

É necessário uma hermenêutica correta, mas Deus exerceu soberania sobre o processo de escrever a Bíblia, inclusive sobre a cultura dos escritores. A Bíblia é transcultural e supracultural. Isto não significa que as pessoas que interpretam a Bíblia não são influenciadas pelos seus pré-entendimentos ou pré-supostos culturais (1983, p. ).

O referido erudito, continua defendendo a necessidade de uma contextualização que tenha a Bíblia como ponto principal, mesmo entendendo e levando em consideração fatores supraculturais, culturais e ideológicos. O que precisa ficar claro é que mesmo a cultura sendo muito importante para comunicação da mensagem cristã, ela não pode passar de um ponto de contato ou de um abre olhos , para que o nativo entenda, baseado em seu contexto cultural e nunca a partir dele, o que a Bíblia está dizendo. Quando os comunicadores da mensagem não entendem está verdade óbvia, caem no erro de diluir a mensagem cristã, comunicando através de compreensões culturais equivocadas ou através de conhecimento histórico alheio a Palavra de Deus, dividindo-a com certos elementos culturais ou mesmo substituindo-a por outros elementos que segundo eles podem “ajudar a uma melhor compreensão”, não levando em conta que apenas a Bíblia, conforme já afirmamos, é a única Palavra de Deus inspirada.

Fica claro que quando o comunicador da mensagem (missionário), não comunica de forma que a mensagem venha contextualizada em parâmetros culturais compreensíveis, mas, condicionada à cultura receptora, ele provoca um erro gravíssimo, muito bem descrito por Nicholls (1983):

A redução da interpretação para o evento interpretado, e a limitação da fé para fé baseada em conhecimento histórico, elimina da categoria “Palavra de Deus” qualquer compreensão de um elemento verbal e proposicional na revelação divina. A escritura na sua totalidade já não tem um valor normativo, e o conteúdo da fé é deixado sem definição. Estamos gratos pela ênfase dada pela nova hermenêutica (evangélica) ao papel da próxima experiência vivencial do intérprete sobre sua tarefa exegética e expositória. (1983, p. 34)

Ainda segundo Nicholls (1983), a verdadeira Contextualização defende a posição histórica da autoridade da Bíblia como sendo inspirada divinamente, autoridade sem igual, infalível (não importando a época) e confirmada pelo próprio Cristo nos seus discursos, que transcendem a nossa própria experiência dela. Quando alguém aceita Cristo como Salvador, também começa a aceitar pela fé a Bíblia como viva e eficaz. Desta forma, mesmo que a cultura humana em sua sabedoria (compartilhada por Deus numa escala incomparavelmente menor) procure acrescentar à Palavra de Deus, ela de maneira nenhuma atingirá seu objetivo, absolutamente, ela apenas reduzirá à Palavra há parâmetros culturais provincianos e jamais conseguirá, com este artifício, algum tipo de contextualização. Fato que aponta para a Bíblia como única fonte de fé e prática, de onde devem beber todos quantos querem de forma pertinente e significativa comunicar a mensagem cristã impreterivelmente. Baseado nisso, Nicholls (1983), ecoa a fé dos séculos quando diz:


O Pacto de Lausanne declara: “Afirmamos a inspiração, veracidade e autoridade das Escrituras tanto do Antigo Testamento como do Novo, na sua inteireza, como a única Palavra de Deus escrita, sem erro em tudo quanto afirma, e a única regra infalível de fé e da prática” (§ 2). A declaração doutrinária da (...) Aliança Evangélica faz uma afirmação semelhante, assim como também fazem as declarações das igrejas e organizações para-eclesiásticas evangélicas pelo mundo afora, independentemente das suas próprias culturas. (1983, p. 35)

Mesmo que a Bíblia tenha sido produzida por autores inseridos numa determinada cultura (israelense), todos foram controlados pela providência de Deus (inspirados). Necessariamente não se tratou simplesmente de criar uma cultura que aglutinasse todas as características necessárias à perfeita comunicação da mensagem. Na sabedoria de Deus, conforme nos diz Nicholls (1983), “esta cultura conseguiu transmitir fielmente a qualidade sem igual da mensagem divina da criação, do pecado, da redenção e, supremamente, da Encarnação e ressurreição do Filho Divino”. Mesmo que repleta de falhas e notadamente rica culturalmente em todos os aspectos humanos a cultura israelense serviu como um veículo para o concebimento histórico da Palavra Escrita, mesmo que, assim como as demais, precisando ser transformada e regenerada por ela, conforme vemos:

Os traços nocivos das nações vizinhas foram eliminados, como a idolatria, a promiscuidade sexual, a corrupção e a injustiça. Nos momentos de enfraquecimento, quando Israel identificou-se e adotou as práticas abomináveis das nações, Deus enviou profetas para os advertir e castigos para que voltassem em arrependimento aos caminhos de Deus. (Burns 2007, p. 72).

Conclui-se, portanto, que todas as culturas, em todos os tempos, são submissas ou normativas à Palavra de Deus, não se eximindo nenhuma da urgente necessidade de transformação e regeneração fomentada por Ela, e que não existe nenhum parâmetro cultural que consiga levar o indivíduo à perfeita compreensão da Palavra de Deus a despeito da genuína Contextualização Bíblica, efetuada por princípios hermenêuticos que apontem para uma perfeita Teologia. E que “para tornar a Palavra viva e transformadora num contexto, o missionário precisa identificar-se com as pessoas e sua cultura” (Burns 2007). Por isso:

A encarnação (Jesus) é o modelo absoluto desta identificação, que envolve tanto a renúncia quanto a identificação. Não haverá qualquer comunicação transcultural à parte desta identificação(...) Esta é a chamada missionária da igreja, o preço a ser pago pela contextualização (Bíblica) verdadeira“ (Nicholls 1983, p. 40).

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

ORIGEM E SIGNIFICADO DO TERMO CONTEXTUALIZAÇÃO.

No âmbito transcultural, para que haja uma comunicação eficaz, precisa-se de conhecimento cultural prévio. Assim, na proporção que o comunicador da mensagem (missionário), estiver familiarizado com a cultura receptora, melhor ele comunicará a mensagem; tendo em vista que cada povo possui sua própria identidade cultural e que esta, se não levada em consideração, quando da comunicação da mensagem, poderá fazer com que a mesma não tenha a relevância que se deseja.

Pensando nisso, deparamo-nos com duas perguntas, que por muito tempo, têm sido um dos grandes problemas enfrentado por antropólogos e missiólogos, as quais são: Como podemos ter uma idéia do que é relevante ou não numa determinada cultura? De que forma podemos tornar o evangelho o mais familiarizado possível com a cultura receptora?

Tais questionamentos são estritamente pertinentes e altamente necessários se o que pretendemos é uma comunicação intercultural eficaz. Todavia, como chegar a este nível de compreensão? Acerca desta jornada de conhecimento e adaptação cultural, que visa definir o processo de tornar uma mensagem pertinente e significativa em determinada cultura, os estudiosos da área espalhados por todo o mundo conferiram vários nomes, num processo que exigiu muita pesquisa e dedicação, mas, nenhum deles teve tanto êxito em âmbito internacional quanto o termo CONTEXTUALIZAÇÃO. Acerca disso, vejamos o que nos diz Hesselgrave (1994):

Têm sido empregados vários termos para denotar o processo pelo qual a mensagem cristã torna-se pertinente e significativa em determinada cultura – acomodação, adaptação, autoctonização, inculturação e (recentemente) contextualização (...)
Parece que se pode argumentar razoavelmente bem tanto a favor quanto contra quase toda palavra que possamos escolher. Mas talvez não tenhamos de efetuar uma escolha. Parece que já escolheram por nós. A palavra “contextualização”, já se tornou tão amplamente divulgada nas publicações missiológicas e teológicas que nós também “podemos chegar a um acordo” com ela! (1994, p. 111-112)

Mas, por que as palavras que antecederam o termo contextualização não obtiveram o mesmo sucesso? Buscando encontrar uma resposta para esta pergunta, vamos analisar, mesmo que superficialmente, cada uma delas. Começamos com acomodação e adaptação, tendo em vista suas similaridades. Acerca das duas, Bavink (1969), não investe muita autoridade, por que, segundo ele, elas conotam algo de “negação ou de mutilação da cultura”, sendo assim pouco abrangentes. Continuando, vejamos o termo autoctonização. Segundo Hesselgrave (1994), “o que quer que seja autóctone para uma cultura é algo que está ”enraizado” nessa cultura, ou é “natural” dela. Por isso, a palavra autoctonização talvez seja errônea, por ter uma conotação ampla demais”. Fato que é óbvio, uma vez que o evangelho não pertence a nenhuma cultura, mas é supracultural. Ainda definindo a gama de palavras que antecederam o termo contextualização, chegamos a inculturação, que segundo Bavink (1969), seria “o processo de desvencilhar de uma cultura os elementos supraculturais do evangelho e contextualizá-los dentro de forma cultural e das instituições sociais de outra cultura, com pelo menos certo grau de transformações dessas formas e instituições”. Seria um termo bastante útil, mas pressupõe uma universalização do que seria contextualizar e por causa disso, não recebeu grande aceitação dos meios acadêmicos. Assim, uma vez conhecidas às palavras que antecederam ao termo contextualização, e os motivos pelos quais elas não permaneceram nos meios acadêmicos internacionais, vejamos agora o termo em questão.

Segundo Hesselgrave (1994), a palavra contextualização apareceu pela primeira vez ao público nos círculos do Conselho mundial de Igrejas (CMI). Ele afirma que, em meados da década de cinqüenta, o Conselho Missionário Internacional lançou o Fundo de Educação Teológica (FET) e lhe emitiu a primeira ordem (de avanço), que consistia em dar todo apoio logístico a certas escolas teológicas ao redor do mundo. O Conselho Missionário Internacional tornou-se a Divisão de Evangelização e Missões Mundiais (DEMM) do CMI em 1961, e dois anos mais tarde deu ao FET sua segunda ordem (de reavaliação), que consistia em aperfeiçoar a instrução teológica no Terceiro Mundo, estimulando o reexame de uma “teologização e comunicação sensíveis à cultura”. Através dessas medidas, o que o DEMM realmente buscava era uma união entre o aluno e o evangelho, no que diz respeito as suas próprias formas de pensar e sua cultura, fomentando um diálogo vivo entre a igreja e o seu meio. A idéia de contextualizar já surgia, todavia, de forma incipiente. Cerca de seis anos depois, em 1969, surgiram as recomendações para iniciar e levar adiante uma terceira ordem (de reforma), que só teve início na década de setenta. A ordem agora era fazer com que as escolas reformassem seus cursos. O que se requeria das escolas foi afirmado nos documentos oficiais do FET (1972), seria o seguinte:

O alvo determinante de seu trabalho é que o evangelho seja expresso e o ministério assumido em resposta:
a) à crise generalizada de fé;
b) às questões de justiça social e de desenvolvimento humano,
c) à dialética entre a cultura local e as situações religiosas e uma civilização tecnológica universal. ( 1972, p. 17-18)

O DEMM começava a perceber o grande abismo que existia entre o dia a dia dos indivíduos e a teologia que era empregada no evangelismo e conseqüentemente no discipulado das igrejas, teologia esta que era até então oriunda unicamente dos países responsáveis pela evangelização destas novas culturas. O DEMM descobria que estas novas igrejas precisavam de uma teologia que atendesse as suas necessidades locais, para que o evangelho realmente conseguisse atingir o seu objetivo que é não só transformar a vida do individuo (conforme todos os atributos comunicados por Deus), mas também o meio em que ele vive (mordomia cristã). Para isso, era necessário que este evangelho chegasse até este indivíduo em parâmetros culturais que se identificassem com ele, que fosse eficazes e pertinentes. Reforçava-se cada vez mais o incipiente conceito de contextualização.

Durante toda a década de setenta, os líderes do FET pressionaram para que este grande abismo entre novas culturas e a comunicação do evangelho fosse minimizado. Enquanto isso, segundo Hesselgrave (1994), muita atenção se dispensou, no sentido mais abrangente do CMI, ao sentido da expressão “de acordo com as escrituras” que fora acrescentada à sucinta confissão doutrinária do CMI ao reunir-se em Nova Déli, em 1961. Questões como unidade, autoridade e aplicabilidade das Escrituras passaram de simples coadjuvantes para protagonistas das discussões. Após esta reunião houve ainda outras duas, uma na Suíça em 1971, onde o pensamento contextualizado mais uma vez ganhou força e outra em Louvain, na Bélgica, ainda em 1971, com ênfase no mesmo pensamento, só que de forma mais enfática, ficando entendido que a posição de Louvain, sobre a autoridade da Bíblia diz “que isso (contextualização) torna a Palavra de Deus audível e é, portanto, capaz de levar o homem à fé”. (1972, p. 434).

Mesmo que sucinto este panorama histórico é imprescindível para descrever todo o caminho que os criadores do termo “Contextualização” percorreram para finalmente forjarem o mesmo, nos documentos oficiais do FET (1972). Neste documento, se fez a seguinte declaração:

O forte destaque da primeira ordem sobre a renovação e a reforma na educação teológica parece convergir para um conceito fundamental, a contextualidade, a capacidade de reagir significativamente ao evangelho dentro da estrutura de sua própria situação. A contextualização não é simplesmente uma moda passageira ou uma palavra chamariz, mas uma necessidade teológica exigida pela natureza encarnacional da palavra. Que sugere o termo? Significa tudo o que está implicado no conhecido termo “autoctonização” e, no entanto, procura ir além. A contextualização esta ligada a como avaliamos a singularidade dos contextos do Terceiro Mundo. A autoctonização tende a ser usada no sentido da reação ao evangelho em se tratando da cultura tradicional. A contextualização, embora não considere isso, leva em conta o processo de secularidade, tecnologia e a luta pela justiça humana, que caracteriza o momento histórico das nações do Terceiro Mundo”. (1972, p. 20)

Entendido a origem do termo contextualização em todo o seu processo histórico, como também seu desenvolvimento acadêmico até sua primeira publicação nos documentos do FET (1972), resta-nos agora definir o que esta importante palavra significa. Devemos ter em mente que quando de seu surgimento, o termo contextualização transmitia uma nova forma de se idealizar a comunicação do evangelho, indicava um novo ponto de partida para teologização. Segundo Hesselgrave “ implicava não tanto a luta com o texto da Escritura para apurar o seu sentido, quanto a entrada nas lutas da humanidade em qualquer momento histórico com o objetivo de descobrir o que Deus está fazendo e dizendo nesse contexto”. Era mais do que comunicar o evangelho a fim de conseguir a salvação, era fazer com que o salvo conseguisse não só compreender a mensagem, mas também conseguisse viver todas as implicações do evangelho sem que perdesse sua identidade cultural, era comunicar “O Evangelho” e não a cultura do Missionário (comunicador).

Uma vez que os eruditos conceberam esta premissa em suas mentes, começaram a tentar definir o que seria a Contextualização. Vejamos, Byang H. Kato (1975), escreve: “entendemos que o termo signifique tornar os conceitos ou idéias pertinentes em dada situação”. Bruce J. Nicholls (1975), diz que “ é a transferência do teor imutável do evangelho do reino para forma verbal significativa para os povos em sua respectiva cultura e dentro de suas situações existenciais particulares”. Outra definição seria de George W. Peters (1977) “a contextualização devidamente aplicada significa descobrir as implicações legítimas do evangelho em dada situação. Vai mais além que a aplicação. A aplicação eu posso fazer ou não preciso fazer sem fazer injustiça ao texto. A implicação é exigida por uma exegese bem feita do texto”. Estas, portanto, foram as primeiras definições de contextualização que surgiram logo após a publicação da idéia pelo FET. Todavia, existem outras hodiernamente aceitas e que têm ajudado a compreensão do termo. Desta forma, nas palavras de Ronaldo Lidório (2007), “A contextualização é um dos assuntos vitais para a proclamação do evangelho em contexto intercultural. Sua compreensão bíblica traça a linha divisória entre uma verdadeira comunicação do evangelho e um simples compartilhar de idéias”. Para Bertil Ekström (2007), “O grande desafio é comunicar as Boas Novas de salvação de forma que as pessoas entendam a mensagem e captem a relevância da salvação para suas vidas”. Na visão de Durvalina Bezerra (2007), “Contextualizar é um grande desafio para todo comunicador do evangelho e, mais ainda para aqueles que se propõem a atravessar as fronteiras culturais”. Em linhas gerais, contextualizar seria tornar a mensagem pertinente e significativa a um meio, comunicando todos os atributos inerentes à mesma, mas levando em consideração as circunstâncias culturais que a envolvem, no sentido de prover uma melhor compreensão da mesma e nunca uma modificação.

Uma vez definido o termo Contextualização, fica evidente que o mesmo, tendo em vista todas as suas atribuições, é de suma importância para uma perfeita comunicação intercultural, principalmente em se tratando de uma mensagem tão importante e urgente, quanto à do Evangelho de Jesus Cristo. Portanto, por causa desta grande necessidade de uma comunicação contextualizada e tendo em vista toda a responsabilidade que envolve este processo, foi que surgiu a necessidade de uma “Contextualização Bíblica”, que é a comunicação da mensagem fundamentada e extraída única e exclusivamente da Bíblia, mas, através de parâmetros culturais inerentes ao indivíduo, os quais funcionam como uma ponte para uma perfeita compreensão da mensagem, desde que os mesmos não se encontrem em discordância com teor supracultural e sagrado da mesma.