segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

A CIDADE DOS MORTOS.

Na cidade do Cairo, capital do Egito, cerca de um milhão de pessoas se aglomeram num complexo habitacional pouco ortodoxo. Este conjunto de residências em muito difere do que estamos acostumados a ver, ou mesmo, a habitar. Trata-se do conglomerando de vários cemitérios que ocupam uma boa parte da cidade (cerca de 7 Km) e que por suas características tem recebido o exótico nome de “A Cidade dos Mortos”.

Esta fantástica “necrópole” abriga, além de pessoas e sepulturas, mesquitas, escolas, butiques, vendedores ambulantes, polícia, água, eletricidade e alguns outros utensílios que transformaram esta necrópole num bairro vivo. Segundo a repórter Ángeles Espinosa, que visitou o local, os desabrigados vivem em meio às tumbas (que nada lembram as nossas por causa da tradicional pompa egipcía oriunda dos tempos dos faraós), único alojamento disponível dessa capital superpovoada.

Apesar de não ser nada pragmático, o conviver com os mortos não é algo novo, remonta a muitos anos em nossa “jornada” e passou por vários estágios. A princípio as pessoas que eram acometidos pelo “Único Mal Irremediável” (para citar um dos nossos), eram depositadas em Catacumbas, as quais posteriormente também serviram para cultos cristãos em meio as perseguições. Estas perseguições, por sua vez, geravam várias mortes de cristãos que se negavam a renunciar sua fé e transformavam-se em mártires. As pessoas que iam morrendo posteriormente, tendo em mente a “promessa do ressurgimento” quando da parousia, eram enterrados próximas a estes mártires, pois, no pensamento dos que empreendiam o velório, esta proximidade lhes garantiria uma “maior proteção” (e dava origem aos primeiros cemitérios).

Com o passar dos anos, este conglomerado de sepulturas recebeu também um local de culto, as posteriormente conhecidas Basílicas, que além de sua função religiosa também serviam para sepultar os mortos. Dentre estas, a mais conhecida de todas é sem dúvida alguma a Basílica de São Pedro, situada no Vaticano e que também possui sua conhecidíssima Necrópole.

Esta prática de se enterrar cadáveres em “solo sagrado” expandiu-se a ponto de as pessoas não mais enterrar os mortos em espaços comuns, mas, em cemitérios (agora firmados) que estivessem próximos a locais de culto. Todavia, só quem possuia acesso a esse tipo de “serviço” eram os ad sanctum (na tradução do meu pobre latim frustrado) os mais ricos. Esta prática tomou proporções inimagináveis na alta idade média, a ponto das igrejas abrigarem mais e mais cadáveres confundindo-se adoração e sepultamento. Por causa da demanda, os túmulos individuais foram se tornando cada vez mais escassos, pois, nas igrejas, tendo em vista o espaço, as pessoas eram esterradas num mesmo local sem especificação alguma. Esta coletividade se acentuou ainda mais Com o advento da peste negra, pois, os cemitérios (igrejas) ficaram sobremaneira abarrotados (não de adoradores em busca de salvação, mais de defuntos em busca de um pedaço de chão), fato que forçou a criação de sepulturas também nos espaços anexos aos templos (os chamados passos). A solução para este abarrotamento apenas surgiu com o passar dos anos, pois, com a proliferação dos fiéis os atos funebres se tornaram cada vez mais religiosos, o que necessariamente diminuia a obrigatoriedade de um túmulo in loco. Assim, os cemitérios passaram a existir também em locais onde antes não haviam igrejas, embora, elas fossem construídas depois (fato que ocorre até hoje só que em proporções menores, capelas).

Também contribuiu para pluralização dos locais de sepultamento a secularização cada vez mais presente no cotidiano das pessoas (rastro do iluminismo), bem como as profícuas preocupações médicas por causa do alto contato com os mortos (principalmente em meados do século XVIII na Alemanha e na França), as quais modificaram drasticamente a forma como os velórios ocorriam (agora restritos aos familiares), transformando também os locais de sepultamento, os quais passaram a ser mais isolados e higiênicos (eu sei, também não concordo, mas é a história, fazer o quê?) moldando a forma dos cemitérios e aproximando-os dos modelos que possuimos atualmente.

Com isso em mente, perceba que não só culturalmente como acabamos de ver ao longo da história e atualmente com “A Cidade dos Mortos” situada Egito, mas, em todo o tempo (agora falo espiritualmente), conforme relato bíblico, vivos e mortos (crentes e descrentes) dividem o mesmo espaço, com a única premissa de que estes últimos (descrentes) ainda podem mudar sua situação.

Observe!

Quando da escolha dos seus seguidores, Jesus empreendeu o seguinte diálogo visando por à prova aqueles que realmente tinham o interesse de segui-lo:

A outro disse Jesus: Segue-me! Ele, porém, respondeu: Permite-me ir primeiro sepultar o meu pai. Mas Jesus insistiu: Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos (Lc 9.59-60a).

A Bíblia sempre foi clara ao associar o pecado com a morte (Rm 6.23). Mas, com o diálogo acima, Jesus tornou ainda mais óbvio que todo aquele que ainda não o recebeu como Salvador (dom gratuito da vida eterna), está morto em seus delitos, uma vez que todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus (Rm 3.23) e a recompença para isso (pecado) é a morte. Perceba que o discípulo pedia para apenas começar a servir a Jesus quando o seu pai falecesse, mas Jesus, o aconselhara a deixar para os mortos o sepultar os seus próprios. O que se percebe é que todo o homem que ainda não recebeu a Jesus é um cadáver ambulante, que tem aspecto de quem vive, mas está morto (porque vivo, vive uma ilusão, e morto, habitará num caldeirão).

Depreende-se, portanto, que todos nós habitamos numa imensa necrópole.

Porque, assim como os egipcíos do Cairo (não literalmente, mas espiritualmente) convivemos com mortos no ônibus a caminho da escola, no cinema quando assistimos a algum filme, no restaurante quando tomamos as refeições, no trabalho, nas ruas, nas casas, enfim... Covivemos com os mortos!

Esta terrível premissa fenomenológica provoca uma insegurança inquietante e facilmente apreciada na seguinte indagação: Eu estou vivo, ou estou morto?

Ora, a resposta é fácil.

Se você, que acabou de ler este artigo, concordou comigo, parabéns! Você está vivo. Mas não apenas vivo, também com a sublime missão de trazer outros a vida (Jo 10.10).

Todavia, se você não concordou (porque ainda não têm Jesus), tenha bastante cuidado, pois, a Palavra é clara:

Os vivos, somente os vivos, esses te louvam como hoje eu faço(Is 38.19a).

Assim...

Meu querido defunto, se você quer viver (?), Aceite a Jesus e tenha vida em abundância nessa imensa necrópole, só que, fora da tumba!

Nas célebres palavras de Horácio...

Carpe diem!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

ALÉM DO VÉU DE MAYA.


Na Mitologia Hindu (Dighanikaya), o neófito (não iniciado), está sujeito ao self (uma espécie de sono, ignorância, prisão ou véu), até que é esclarecido por alguém que conhece o verdadeiro ser, “Brahma”, que simpaticamente o ensina acerca do conhecimento do mundo e da vaidade, desta forma, o homem é livre de suas próprias ilusões e conhece então o seu verdadeiro ser, encontrando enfim a orientação necessária para romper o “Véu de Maya”.

O Véu de Maya seria uma distração sensorial que impede o homem de ver o mundo da forma como ele é. Imagine uma imensa fila indiana a vagar pelo deserto, e imagine que existam inúmeras possibilidades de se empreender uma nova direção, todavia, todos os homens, por causa de um “tapa olhos”, não conseguem vislumbrar o que acontece a sua volta, sujeitando-se a tão somente olhar a nuca daquele que vai a sua frente. Romper o Véu de Maya seria deixar esta fila indiana através do conhecimento de que se é possível percorrer um outro caminho, um caminho não percebido até então pelos demais pelo fato do véu que os engana. Por causa do Véu, os homens pensam que estão orientados e no caminho certo, e por vezes não conseguem divisar o mal que vos espreita, o qual seja o caminhar para lugar algum e esquecer de seu lugar de origem.

Segundo Mircea Eliade, nos ensinamentos hindus os deuses caem do céu quando lhes falha a memória e seu pensamento se confunde; paradoxalmente, os deuses que não se esquecem são imutáveis, sublimes, eternos, de modo que não reconhecem qualquer tipo de mudança. O esquecimento equivale ao “sono”, ao acaso, a perda de si mesmo, à desorientação, à “cegueira” (a venda nos olhos).

Diz um velho texto hindu, o Chandogya-Upanishad que certo homem foi seqüestrado por salteadores com os olhos vendados, e após ser liberto num local ignorado passou a bradar: “Fui conduzido pra cá com os olhos vendados, fui abandonado por aqui com os olhos vendados!”. Após algum tempo alguém lhe remove a venda, e o homem passa a indagar o seu caminho de aldeia em aldeia, até que enfim consegue retornar para casa. Fato interessante, é que este mesmo texto diz que aquele que tem um mestre competente (que o ensina o caminho) consegue livrar-se das vendas da ignorância e atingir finalmente a perfeição.

Um certo sábio hindu comentou que este homem tolhido pelos salteadores foi levado para longe do “Ser” (seu lugar de origem) e se vê preso na armadilha do seu corpo (na fila indiana). Os ladrões representam as falsas idéias, sua vida transitória (o medo de romper a fila). Seus olhos estão vendados com a venda da ilusão (o véu de maya), a qual provoca um frenesi de incertezas, “sou o filho de fulano, sou feliz ou infeliz, sou inteligente ou estúpido, sou piedoso, etc. Como devo viver? Onde existe uma via de evasão? Onde está minha salvação? É neste estado nefasto e recheado de dúvidas que ele se encontra até que alguém “esclarecido” lhe retira a venda que o impede de ver a realidade concreta, o que está além do véu da ilusão e o coloca na direção correta.

A idéia de um estado de ilusão que se nos revela foi de certa forma ensejada a cultura ocidental de maneira mais ampla através dos escritos de J.J. Benitez (Operação Cavalo de Tróia), os quais tem colocado deveras caraminholas nas mentes do menos esclarecidos, bem como através da Trilogia Matrix, produção cinematográfica que de maneira direta exemplifica o estado de alguém que não ciente de uma realidade patente, se torna mero coadjuvante de uma realidade que o envolve drasticamente excluindo-o de participar de um acontecimento real. Ambas as idéias não apontando para o sentido real de que se poderia derivar o conceito de uma ilusão que acomete o homem e o torna escravo de uma teia de incertezas.

Todavia, o Apóstolo Paulo, muito antes que qualquer destes, já nos advertia a respeito de um véu que nos impedia de ver uma profunda e urgente realidade tão patente aos nossos olhos, mas, camuflada por um “tapa olhos” que nos impedia de divisar sua importância. Ele disse: “Mas, quando se converterem ao Senhor, então o véu se tirará” (II Co 3.16).

Paulo procurava nos alertar, através da Palavra de Deus, que o homem que não é esclarecido pelo Espírito Santo por meio da pregação do evangelho (paro o hindu seria o Brahma), encontra-se envolto numa bruma (na mitologia hindu o véu de maya) que o impele a caminhar distante em busca de um futuro longe de casa (nos lugares baixos, ínferos), distante de seu Criador. Todo homem que não conhece a salvação fomentada pelo Espírito de Deus, que só pode ser concedida através da morte de Jesus (Jo 16.7) na Cruz do Calvário, encontra-se escravo deste mundo de ilusões transitórias que se esvaem sem prédicas de tempo ao simples fluxo do viver. Mas, com o revelar da Palavra que é compreendida por meio da fé, o homem tem diante de si descortinado o “Véu da Criação” e passa a compreender a verdade perene que o envolve desde a fundação do mundo, entendendo o plano de ação do Criador de todas as coisas para restauração de sua vida. Quando a revelação do Deus Todo Poderoso irrompe na mente do que crê, o Espírito o liberta desta realidade transitória e lhe responde as dúvidas crucias que o infligiam tamanha angústia, fazendo-o perceber de onde ele veio, para onde ele vai, o quê o espera, e o que há além do caos disfarçado pelo véu.

Paulo, no mesmo texto, também fez menção à tristeza que o acometia pelo fato de alguns não se aperceberam da existência do véu, pois estes, mesmo sendo ensinados, continuavam sem compreender (II Co 3.14-15). Muitos, ainda hoje, talvez não acreditem na realidade do véu, pois, esta é a função do “tapa olhos”, ele existe para isso, não permitir a visão, a rememoração, a libertação, a salvação. Para essas pessoas, a única coisa a fazer é rogar a Deus que os liberte da efêmera ilusão da vida, dessa teia de vaidades que os envolve e os permita ver a realidade da vida, a qual está bem ali, “Além do Véu de Maya”.

Nas sábias palavras de Fauzi Beydoun:

Você vê o meu corpo e pensa que sou eu
Ele não é eu ele não é meu
É só uma dádiva dada emprestada
Deus foi quem me deu por breve temporada
É só uma roupagem, densa embalagem
Que não me pertence
Aliás, nada me pertence nesse mundo
Tudo é transitório, tudo é ilusório
Ainda que se pense que o que se vê é pura realidade
Na verdade, o que se está a ver
Não é mais que um lapso
Distorcido da eternidade

LIBERTE-SE!

domingo, 13 de dezembro de 2009

JESUS E O CISMA SAMARITANO (Parte 2)




“Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos” (Zc 4.6b).




Interessante o fato de pensar num texto para introduzir a segunda parte deste artigo e me deparar justamente com este em especial. O contexto é exatamente o mesmo, porém diverso fenomenologicamente. O profeta Zacarias (520 a.C.), contemporâneo mais jovem do profeta Ageu (520 a.C.), assim como este último, foi incumbido pelo Senhor de induzir o povo à “reconstruir o Templo”. Segundo Shedd, “A mensagem escrita de Zacarias, forma um significativo elo entre os profetas anteriores, a cujo ministério ele se refere e as fases posteriores da obra redentora de Deus, sobre a qual o seu livro presta tão eloqüente testemunho”. Segundo se depreende, o elo a que se faz referência diz respeito à posição que o Templo ocupava na adoração do povo, fato que norteava a premissa de sua reconstrução e todo o empenho por parte daqueles responsáveis por esta tarefa.

Segundo Mircea Eliade, um dos mais influentes estudiosos da religião do século XX, não apenas em culturas específicas (como a israelita), mas em todas as demais (mesmo que com centros e/ou objetos de adoração diversos), o templo, ou melhor, as hierofanias (algo de sagrado que se nos revela), representam para os povos (que podem ou não variar em termos de desenvolvimento cultural), uma ruptura no espaço cósmico (mundo), fato que provoca uma separação (limiar) entre o espaço sagrado e o profano. Daí a importante posição que os centros de adoração ocupam na identidade cultural de todos os povos, pois, o homem religioso (em todos os tempos) é sedento do ser (sagrado). Eliade vai mais longe ainda em seu pensamento a respeito da posição do sagrado na vida dos povos ao dizer que “é graças ao templo (a manifestação do sagrado) que o mundo é ressantificado em sua totalidade”.

“Uma vez perdido contato com o transcendente, a existência no mundo já não é possível”, por causa disso, o templo é tão importante, pois, denota singularidade num mundo onde “o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser” (Eliade).

Vislumbrado a importância do local de adoração para implementação da identidade cultural dos povos, passemos outra vez a analisar o texto extraído do Livro do Profeta Zacarias. Ele diz, “não por poder, mas pelo Espírito”. Com esta sentença, conforme mencionei acima, percebemos a semelhança entre o pensamento de Zacarias e o tratar de Jesus em relação à mulher samaritana. No diálogo que estamos analisando (Jo 4.1-42), ficou óbvio que o Mestre sempre procurou esclarecê-la através da atuação maravilhosa do Espírito Santo, e nunca, através do poder de sua possível “ascendência cultural”, ou de qualquer outro meio que não fosse pelo Espírito; fato que não somente válida, mas também especifica o teor da comunicação em contexto intercultural, o qual seria, “Pregai o Evangelho”. Além disso, tanto um (Isaías) como outro (Jesus) procuravam a “Reconstrução do Templo”, todavia, este que agora era pregado pelo Senhor Jesus, não seria reconstruído por mãos humanas (At 17.24), mas, a semelhança do primeiro, seria o local de habitação do Espírito de Deus (I Co 3.16; 6.19). Jesus estava nos revelando que cada ser humano (desde que presente em seu Corpo (Rm 8.9) seria Templo e morada do Espírito Santo, fato que expandiria o “local de culto” e ressantificaria (reorganizaria) um mundo que jaz no maligno (I Jo 5.19). Jesus implementava a “otimização” da luta contra o caos através de embaixadas (Templos Humanos) espalhadas por todo o mundo, as quais, representariam a presença d’Ele em todo lugar e funcionariam como uma tocha acesa em meio à escuridão, como o sal que não permitiria que o mundo de resto apodrecesse. Jesus comissionava a humanidade para que, com a mensagem supracultural do evangelho, funcionassem como “A Solução para o Caos!”.

Uma vez compreendida a relação entre o texto de Zacarias e a nova proposta de Jesus em relação ao “Templo”, voltemos ao texto do Evangelho de João.

Ora, percebemos a relevância da “abordagem contextualizada” de Jesus através do progresso conseguido em tão pouco tempo de conversa. Lembre que no princípio do diálogo, conforme mencionamos, a mulher começa por tratar ao Senhor Jesus tão somente como um simples judeu. A seguir, após mais um momento de conversa ela já o trata como Senhor, e por fim, ponto que da início a análise do diálogo neste segundo momento, ela o chama de “Profeta”.

Neste ponto, voltemos ao texto.

“Senhor, disse-lhe a mulher, vejo que tu és profeta” (V19). Essa foi à resposta da samaritana após a breve e esclarecedora observação do Mestre a respeito de sua vida particular. Jesus, em seu comentário, toca num ponto delicado da vida daquela mulher (sua situação conjugal) e a faz perceber a singularidade de sua pessoa. Como a postura assumida por Jesus denotava uma poderosa autoridade espiritual (algo raro naquela região), a mulher não perdeu tempo, e numa última tentativa de fazer surgir do coração de Jesus o possível “leão cultural” até então “adormecido” (fato que justificaria o questionamento, e que no “pensamento da mulher” revelaria de uma vez por todas o caráter de Jesus), fez o seguinte comentário, na esperança de super aguçar até o mais comedido de todos os judeus, “Nossos pais adoravam neste monte; vós, entretanto, dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar” (V20).

Obviamente ela estava muito interessada em ouvir a opinião de Jesus a respeito desta “disputa cultural” que ao longo dos anos já contava com a morte de inúmeras pessoas que, em seu zelo desmedido, já haviam ultrapassado todos os limites possíveis (Josefo). A grande questão em torno deste tema seria: Afinal, qual dos dois montes realmente seria o mais santo, Gerisim ou Ebal? Com esta indagação, a samaritana achava que estava preparada a arena para mais uma batalha entre uma e outra cultura. Mas, inevitavelmente, ela mais uma vez ouviu uma poderosa resposta de Jesus.

“Disse-lhe Jesus: Mulher, podes crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são esses que o pai procura para seus adoradores. Deus é Espírito, e importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade” (V 21-24).

Desde muito antes e, a época deste diálogo, à “supremacia cultural” de cada povo estava intimamente relacionada à área de atuação que o seu deus controlava e ao poder de que este deus dispunha para, em tempo oportuno, livrar o povo que o adorava de possíveis inimigos (e ainda não é?). Quem possuía o deus mais poderoso inevitavelmente era o povo mais poderoso, e essa particularidade norteava toda a vida social em praticamente todas as culturas. A intenção dos samaritanos era se tornar melhor que os judeus por serem o povo que detinham o verdadeiro local de “atuação e habitação” do Senhor (o templo de Gerisim), enquanto que os judeus pensavam exatamente o contrário (com seu templo no Ebal, Jerusalém). Percebe-se então, que com esta pergunta, o objetivo da samaritana era reacender a chama desta disputa.

Todavia, segundo Champlin, “a resposta dada por Jesus declarou a abolição da adoração sectarista, a derrubada de bandeiras religiosas, a remoção de reivindicações rivais do meio da adoração verdadeira, sem importar se essas reivindicações são judaicas ou samaritanas. O verdadeiro centro da adoração não era nem um monte e nem um templo, mais sim, uma pessoa – O Cristo”.

Cristo teria a missão de remir “pessoas de todos os povos” (Ap 5.9-10), o que “seria suficiente para destruir todas as barreiras que os homens teriam construído para satisfazer o seu orgulho nacionalista” e sectarista. A resposta de Jesus apontava para uma adoração que não precisaria de bandeiras, que não estaria restrita aos templos suntuosos construídos pelos homens, que viria como a mais poderosa resposta às barreiras culturais que separavam os povos e funcionaria como o mais poderoso símbolo da unidade, pois, os seus adoradores estariam todos habitando num mesmo corpo, reunidos em um único propósito; o qual seria, Adorar ao Deus todo poderoso de maneira que os pressupostos culturais não mais os separariam, pois, adorariam em “Espírito e em verdade”.

Jesus transferia a autoridade (criada pelos homens) dos templos construídos em todas as culturas e a depositava sobre a vida das pessoas (esse é o sentido de reconstrução fomentada por Cristo a que me referia acima), acabava com os entreveros culturais que visavam supremacia e nivelava todos os homens a unidade (transformando-os em embaixadores do céu).

Ele disse: “Deus é espírito”. Com esta sentença, Ele afirmava que Deus não estava sujeito às estruturas, as formas, aos tipos, as cores, aos ritos, aos costumes ou a qualquer outro tipo de capricho humano. Segundo Champlin, o fato de Deus, conforme citação de seu Filho, “não possuir corpo físico, subtende, sim, até mesmo requer, que ele seja adorado de maneira não corpórea (não quero dizer com esta citação fora do corpo e sim sem a necessidade de estruturas humanas)”. Jesus descortinava diante daquela mulher uma verdade sempre presente nas Escrituras, mas até então mal compreendida pelos homens, uma realidade espiritual que estava acima de todas as culturas, um Evangelho supracultural.

Com esta belíssima declaração, Jesus procurou retirar do homem toda reserva cultural que tanto o afligia, direcionando de uma vez por todas o foco de nosso verdadeiro ataque, o qual não poderia ser melhor definido se não nas palavras inspiradas do Apóstolo Paulo, “porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes” (Ef 6.12). E trazia, segundo Bosch, os outrora não-humanos samaritanos a romper com o fundamentalismo judaico tradicional. Saciava dentro do homem, a sede do ser.

A última resposta dada pela mulher samaritana em nada tem haver com as primeiras. Ela não foi evasiva ou procurou desviar o foco da conversa através de seu sarcasmo. Mas, conforme Jesus pretendia desde o princípio, ela desvendara algo de melhor que havia em seu ser, e, numa resposta que denota uma profunda reflexão mística e religiosa em tudo quanto vinha sendo exposto por Jesus, ela replica: “Eu sei, que há de vir o Messias, chamado Cristo, quando ele vier, nos anunciará todas as coisas” (V 25). Este “nos anunciará”, plural, que englobava nas palavras da própria samaritana até os inditosos judeus (pelo menos até agora), já nos descortina algo que fluía desde o mais profundo do seu ser, algo que denotava uma transformação não antes possível à mente mais otimista, um homem, enviado pelo Deus Todo Poderoso, que, até aos olhos da sectária samaritana, poderia por termo a esta nefasta barreira que os separava.

É fato conhecido que a adoração samaritana baseava-se tão somente na Torá, o conjunto de cinco Livros da Lei judaica escritos por Moisés. Jesus sabia que a mulher que conversava com Ele, e que ansiava pela revelação do Messias, conhecia muito bem cada sentença contida em cada um daqueles livros, principalmente as que faziam menção ao tão conhecido diálogo entre Jeová e Moisés, quando este era comissionado a libertar o povo das mãos de Faraó. Assim, numa sentença que serviu como um divisor de águas na vida daquela humilde mulher, Jesus, em alusão à resposta dada por Deus em referência a sua identidade indagada por Moisés, asseverou nas mesmas palavras tão caras ao coração daquela mulher: “Eu Sou, eu que falo contigo” (V 26). Segundo Timóteo Carriker, a utilização por parte de Jesus do nome “Eu Sou”, sugere uma presença salvífica que, no próprio nome, Jesus pode ousar e aceitar em usar como dele próprio”.

Diante disso, a reação da samaritana esboçada num misto de espanto e alegria estampados em seu rosto pálido era algo tão patente, que os discípulos que acabavam de voltar de sua épica viagem a Sicar, não ousaram perguntar o que estava acontecendo, embora estivessem espantados de Jesus estar conversando com uma mulher, “e pior” samaritana.

A mulher, maravilhada com o que se realizara em sua vida (graças ao Evangelho contextualizado pregado por Jesus), abandonou o seu cântaro junto à fonte, e a plenos pulmões voltou a Sicar, gritando a quem encontrava pelo caminho, “Vinde comigo e vede um homem que me disse tudo quanto tinha feito. Será este, por ventura, o Cristo? Saíram, pois, da cidade e vieram ter com ele” (v 29-30).

Neste ponto, gostaria de abrir um pequeno parêntese e comentar um pouco da intenção de Jesus em enviar os discípulos a Sicar. O mesmo orgulho que precisava ser trabalhado na vida da samaritana, precisava também ser arraigado da vida dos próprios discípulos. Assim, Jesus, entrevendo o que aconteceria numa exótica visita destes a uma cidade samaritana, sem delongas, os enviou. Imaginemos a cena dos discípulos numa das “bodegas” samaritanas tendo que conversar com o comerciante? Imagine ainda os semblantes de ambos, judeus e samaritanos, se entreolhando pelas ruas empoeiradas da humilde cidade? Não seria preciso tanta imaginação para divisarmos os semblantes carregados num misto de reserva e repulsa, que os impelia a, o quanto antes, deixar aquela inditosa cidade e retornar, “incontaminados”, a presença do Mestre.

O fato é que, enfim eles retornaram: “Nesse ínterim, os discípulos lhe rogavam dizendo: Mestre, come! Mas ele lhes disse: Uma comida tenho para comer, que vós não conheceis. Diziam, então, os discípulos uns aos outros: Ter-lhe-ia, porventura, alguém trazido o que comer?” (V 31-33).

Jesus, através da visita realizada pelos discípulos, procurava “abrir-lhes os olhos” para necessidade de perceberem seu ministério transcultural. Queria fazer com que os mesmos percebessem nos samaritanos vidas que precisavam das Boas Novas trazidas pelo Mestre, todavia, eles não compreenderam esta sublime verdade, que como sempre, estava sendo ensinada por Jesus nas entrelinhas de sua vida cotidiana. Com as palavras “uma comida tenho para comer, que vós não conheceis” em resposta a pergunta feita pelos discípulos, Jesus nos deixa isto muito claro. Poderíamos conjecturar as palavras de Jesus: “vocês ainda não conhecem minhas verdadeiras necessidades, o teor da minha missão”.

Ora, conforme percebemos em toda narrativa a respeito da missão do Cristo, a ambição deste sempre foi cumprir sua missão pré-estabelecida pelo Deus Pai, a qual seja se revelar ao homem conduzindo-o a reconciliação eterna. Observe: “A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra”. E, nesta obra de restaurar o homem a presença de Deus, os samaritanos, sim, “até eles”, para espanto dos judeus, estavam também inclusos. Algo que foi poderosamente expressado pelo Senhor Jesus num dos exemplos mais bonitos de toda a narrativa bíblica.

Lembre-se que a mulher samaritana tinha abandonado o cântaro e corrido para anunciar aos seus conterrâneos o encontro que tivera com o Cristo, pois é, ela tinha logrado êxito em seu “frenético evangelismo” e uma multidão a acompanhava para ver de fato o que estava acontecendo. É neste ponto que Jesus reúne os discípulos em torno de si e nos dá um profundo exemplo da importância contextual do Evangelho para sua perfeita compreensão: “Não dizeis vós que ainda há quatro meses até à ceifa? Eu, porém, vos digo: erguei os olhos e vede os campos, pois, já branquejam para a ceifa”.

Os samaritanos, vindo ter com Jesus, no movimento natural do caminhar, mais pareciam com um campo de trigo quando açoitado pelo vento. Jesus se utilizou desta semelhança para criar uma ponte que melhor permitisse aos discípulos compreender o que Ele estava dizendo. Ele dizia, Levantai os vossos olhos, olhem para os samaritanos que caminham até nós, vocês não dizem que eles não estão maduros (não são dignos) para o Reino de Deus, eis que Eu vos digo, observem melhor, pois, os campos (os samaritanos) já branquejam para ceifa (procuram desesperadamente a salvação). Que exemplo belíssimo! Agora eles entendiam o porque de viajar por caminho, outrora, tão inditoso; entendiam o porque do convívio provocado por Jesus quando os enviou a Sicar; entendiam porque Jesus, para escândalo de qualquer “Rabino”, estava conversando com uma mulher samaritana. A resposta agora era óbvia: Os samaritanos também faziam parte do Reino de Deus!

Nos versículos que seguem (36-38) o Senhor continua por ensinar a matemática da ceifa, os trabalhos realizados pelo que lança semente (evangeliza em solo ainda não semeado) e do colhe o fruto de seu trabalho (aquele que acolhe os que reconhecem a Jesus como Senhor) mostrando que tanto um como o outro, entesouram para a vida eterna. No caso, a samaritana havia plantado, e dentro em breve, eles estariam colhendo. Isto sim é uma aula de cristianismo!

“Muitos samaritanos daquela cidade creram nele”. Tanto o testemunho da mulher, como o convívio com Jesus e os discípulos, agora sim comunicadores, contribuíram para que muitos recebessem a Cristo como Salvador e tivessem suas vidas transformadas sem prejuízo algum a sua raça, a sua história, a sua cultura. O que prova que não é o evangelista que “retira as arestas” e sim a Palavra de Deus no trabalhar do Espírito Santo.

Por fim, diante de mais este exemplo belíssimo de contextualização deixado por Jesus, não poderia encontrar melhores palavras para finalizar este artigo, senão, com as sábias palavras proferidas pelo servo do Senhor:

“A contextualização missionária é um dos assuntos vitais para a proclamação do evangelho em contexto intercultural. Sua compreensão bíblica traça a linha divisória entre uma verdadeira comunicação do evangelho e um simples compartilhar de idéias”.
Ronaldo Lidório.