domingo, 29 de novembro de 2009

JESUS E O CISMA SAMARITANO (parte 1)

Baseado no Evangelho de João 4.1-42

Desde que aprouve a Deus manifestar-se ao homem sempre ficou patente que Ele era Senhor sobre Todos os Povos. Segundo o profeta Isaías (49.6) era “muito pouco para o servo (Jesus), restaurar (apenas) as tribos de Jacó e tornar a trazer os remanescentes de Israel, (assim) Ele também é luz para os gentios, e salvação até os confins da terra”. Todas as nações são alvo da proclamação do Evangelho, cada uma delas precisa desesperadamente de luz para lhes tirar das trevas do maligno e de sabor (do sal) para as vidas que não possuem mais prazer em existir.

Foi por causa desta premissa (de que todas as culturas anseiam pela Palavra) que Jesus, mesmo desenvolvendo um poderoso ministério na Judéia, (pois fazia e batizava mais discípulos que João 4.1), retornou mais uma vez para Galiléia. É nesta viagem de volta que começa o trabalhar de Jesus para, a princípio, nos ensinar a dimensão de nossa “Paróquia”, e em seguida, arrancar de nós todo e qualquer tipo de “reserva cultural” que venha a nos impedir de comunicar o evangelho, uma vez que, "a missão de Jesus não se reduziu a cruzar barreiras geográficas. Jesus também atravessou barreiras sociais, incluindo alguns segmentos da sociedade antes negligenciados" (Carriker 2005).

Diz o texto do evangelho citado que era necessário, para se viajar da Judéia para Galiléia, atravessar a província de Samaria(V4). Ora, judeus e samaritanos se odiavam, num cisma que grassava as duas províncias desde a época que remonta o cativeiro Assírio(721 a.C.). Os assírios tinham como norma, além de retirar o povo domidado de suas terras, trazer um novo povo para ocupar a terra saqueada. Este novo povo se unia aos que, por motivo qualquer, não podiam ser exilados e formavam um novo povo. Esta “caldeação” de um novo povo trazido pelos assírios, com o que restou das Dez Tribos do Norte, deu origem a um "povo mestiço" que era poderosamente odiado pelo "puro judeu". O início desse fato se enocontra muito bem documentado no trecho de II Reis 17.24-41, vejamos:

"O rei da Assíria trouxe gente de Babilônia, de Cuta, de Ava, de Hamate e de Sefarvaim e a fez habitar nas cidades de Samaria, em lugar dos filhos de Israel; tomaram posse de Samaria e habitaram nas suas cidades. A princípio, quando passaram a habitar ali, não temeram o Senhor; então, mandou o Senhor para o meio deles leões, os quais mataram a alguns do povo. Pelo que se disse ao rei da Assíria: As gentes que transportaste e fizeste habitar nas cidades de Samaria não sabem a maneira de servir o deus da terra; por isso, enviou ele leões para o meio delas, os quais as matam, porque não sabem como servir o deus da terra. Então, o rei da Assíria mandou dizer: Levai para lá um dos sacerdotes que de lá trouxestes; que ele vá, e lá habite, e lhes ensine a maneira de servir o deus da terra. Foi, pois, um dos sacerdotes que haviam levado de Samaria, e habitou em Betel, e lhes ensinava como deviam temer o Senhor. Porém cada nação fez ainda os seus próprios deuses nas cidades em que habitava, e os puseram nos santuários dos altos que os samaritanos tinham feito. Os de Babilônia fizeram Sucote-Benote; os de Cuta fizeram Nergal; os de Hamate fizeram Asima; os aveus fizeram Nibaz e Tartaque; e os sefarvitas queimavam seus filhos a Adrameleque e a Anameleque, deuses de Sefarvaim. Mas temiam também ao Senhor; dentre os do povo constituíram sacerdotes dos lugares altos, os quais oficiavam a favor deles nos santuários dos altos. De maneira que temiam o Senhor e, ao mesmo tempo, serviam aos seus próprios deuses, segundo o costume das nações dentre as quais tinham sido transportados (...) . Assim, estas nações temiam o Senhor e serviam as suas próprias imagens de escultura; como fizeram seus pais, assim fazem também seus filhos e os filhos de seus filhos, até ao dia de hoje".

Esta intriga agravou-se ainda mais quando o Reino do Sul foi levado para Babilônia por Nabucodonozor (605 a.C.), pois, com a saída dos judeus que habitavam Jerusalém, os samaritanos (agora misturados a outras raças) obtiveram imensa liberdade, que perdurou até o surgimento de Ciro (539 a.C), quando este, ao conquistar a Babilônia, permitiu que os Judeus e seus sucessores retornassem a Jerusalém (535-445 a.C.), com ordens para a reconstrução do Templo e dos muros da cidade, fato que causou certo repúdio em alguns samaritanos, como por exemplo em Sambalate, Tobias e Gesem. Pois estes, conforme relato de Neemias, quiseram impedir o processo de reconstrução (Ne 4 e 6).

Foi o ressurgimento de Jerusalém como a cidade do Grande Rei (Adonai), que fez com que a comunicação com os “impuros” e caldeados samaritanos (na visão agora zelosa do novo judeu que voltava do exílio) diminuísse ainda mais, fato que provocou uma multiplicação da imensa rivalidade já existente.

Na tentativa de melhor expormos esta disputa cultural, e a proporção calamitosa que tomou, pouco poderíamos somar ao comentário de Enéas Tognini (1980):

"Maior se tornou à rivalidade quando Esdras (Es 9, 10) admoestou os sacerdotes a deixarem as mulheres estrangeiras. Muitos deles não aceitaram o conselho de Esdras. Um desses sacerdotes era genro de Sambalate e não querendo repudiar a mulher foi abrigar-se em Samaria e seu sogro prometeu-lhe construir um templo em Gerisim e ele seria lá, não mero sacerdote, mas Sumo-Sacerdote. Aceitou a proposta. O templo foi construído e ele investido na sua função. O ódio cresceu ainda mais quando João Hircano (130 a.C.) destruiu o templo de Gerisim. Herodes, o grande, construí-lhes outro templo (25 a.C.); não lhes agradou, nem mesmo chegaram a usar, por não ter sido construído no monte Gerisim. De tal maneira se acentuaram as rivalidades, que os judeus consideravam os samaritanos como cães. Os samaritanos eram imundos para os judeus. Não tinham o mínimo acesso ao Templo de Jerusalém..."

Com este breve panorama histórico do ódio que separava judeus e samaritanos, percebemos a “ousadia” de Jesus em não viajar pela Peréia, como costumeiramente faziam os viajores judeus para não passar por solo samaritano, antes, viajando justamente por Samaria. Assim, diante desta decisão, eu até imagino a disposição dos discípulos quando ouviram de Jesus qual seria o seu intinerário, talvez eles até tentaram dissuádi-lo, mas não lograram êxito. Que lição maravilhosa de que não se trata de quem queremos evangelizar e sim de quem precisa ser evangelizado! De que não importa a dificuldade cultural, os empecilhos físicos, temporais e espirituais, pois, para o nosso Senhor Jesus “uma alma vale mais que o mundo inteiro!”.

Em chegado a Samaria, o sol assumia sua posição mais imponente, o calor por aquelas paragens era exorbitante. Numa atitude que denota perfeitamente sua humanidade, Jesus, já próximo de uma das cidades samaritanas chamada Sicar, assentou-se junto à Fonte de Jacó para descansar. “Nisto veio uma mulher samaritana tirar água. Disse-lhe Jesus: dá-me de beber”(V7).

Antes de entrar no mérito do diálogo no mínimo exótico que se iniciava, gostaria de chamar-lhes atenção para a sentença seguinte: “pois os discípulos tinham ido a cidade comprar alimentos”(V8). Ora, já era fato digno de nota um grupo de judeus estar em pleno solo samaritano, como se não bastasse, Jesus, indo mais além em sua tentativa de “abrir os olhos” dos discípulos, os impele a ir até uma “cidade samaritana”. Não é difícil imaginar os comentários que regavam aquela caminhada tão difícil: “Só vamos porque é ordem do mestre!”. O fato é que Jesus estava prestes a trabalhar o caráter daquela mulher samaritana, ensinando-a que Ele é senhor sobre todos os povos, entretanto, simultaneamente, Ele queria a mesma coisa para os seus discípulos, pois, era notório que aquela barreira cultural também os afligia e infelizmente concorria para não comunicação do Evangelho. Ora, isto Jesus nunca permitiria, pois, não importando as insólitas questões culturais que separam os homens, o evangelho jamais poderá sofrer com isso, pois, ele é supracultural, urgente a todos os povos. E os discípulos, mas do que ninguém, precisavam entender esta verdade! (A continuação veremos na parte 2)

Continuando, a barreira cultural a que me referi, e que expressa muito bem o ódio que se nomeava entre aquelas duas culturas, fica patente na declaração da orgulhosa samaritana: “Como sendo tu judeu, pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana?”(V9). Observe que ela faz pouco caso de Jesus, e numa sentença rápida trata-o friamente como um “simples judeu”. Todavia, a resposta de Jesus, como sempre, provoca uma reação inesperada: “Se conheceras o dom de Deus e quem é o que te pede: dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva”(V10). Estas palavras caíram como que um raio no coração daquela mulher, algo que fica óbvio, observando-se sua resposta: “Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva? És tu, porventura, maior que Jacó, o nosso pai, que nos deu o poço, do qual ele mesmo bebeu, e, bem assim, seus filhos, e seu gado?”(V11-12).

A princípio, como tínhamos mencionado, aquela mulher referiu-se a Jesus apenas como judeu (iudo), entretanto, quando Jesus a olhou e disse que se ela ao menos soubesse do presente que estava prestes a receber, e quem era que falava com ela, ela não estaria naquele “pedestal”, mas, estaria disposta a assumir a posição de serva e lhe pediria à água que lhe beneficiaria eternamente. Ao ouvir isso a mulher já não responde de maneira evasiva, mas, (mesmo surpresa pelo fato de um homem, e este judeu, estar conversando com ela), por causa da autoridade e amor com que Jesus lhe respondeu, ela retruca, senhor (kurios) tu não tens com que tirar – a astúcia aqui é algo impressionante, ela via em Jesus um homem diferente, porém, as experiências passadas não a permitiam uma confiança mais fácil, e num tom sobremodo sarcástico indaga a Jesus a respeito de sua total “desprovidade de ferramentas” para lhe dar a água de que falara; lembrando-lhe ainda do possível risco em que incorria ao, de certa forma, procurar se igualar a Jacó, o idealizador daquele tanque.

"Talvez" passasse pela cabeça daquela orgulhosa mulher: “ora, ele não tem balde, nem corda, nem carrega nada consigo. Como pode ele me prometer algo de que não dispõe de meio algum para cumprir?” E num insigth finalizou: “com certeza ele procura me ludibriar, para só assim, conseguir a água de que precisa”. Mal ela havia finalizado seu pensamento, Jesus a responde com a precisão de um exímio cirurgião que de maneira precisa abre caminho para o seu objetivo: “Quem beber desta água tornará a ter sede; aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna”.

Que maneira humilde de responder a mulher, que este que agora falava, era superior a Jacó!

Mas, ao que perece, além de cética, aquela mulher sofria de “sarcasmo crônico” (salientando ainda que ela mal podia engolir a simples presença de Jesus, lembra-se, ele é judeu) e sem perca de tempo retruca: ”Senhor, dá-me dessa água para que eu não mais tenha sede, nem precise vir aqui buscá-la”(V15). Em todo o relato que se tem até aqui, a samaritana jamais se abriu ao diálogo, mas sempre se posicionava numa posição em que observava ao Senhor Jesus do alto, sobre os auspícios de sua enorme altivez e de seu zelo samaritano. Agora, todavia, ela pedia a Jesus esta sublime água de que o mesmo falara, e numa sentença digna de nota (como sempre) Jesus, sem delongas, a tira de seu infortúnio pedestal, mostrando-lhe a urgência de uma novidade de vida, e ao mesmo tempo, mostrando-lhe que sua cultura, mesmo tida em tão alta estima, no que diz respeito a sua vida eterna, não lhe beneficiara em nada, como rapidamente ela percebeu com esta ordenança: “Vai, chama teu marido e vem cá”(V16).

Segundo Champlin (2002), uma conversa que visava um simples copo com água era algo corriqueiro entre viajante e nativo (mesmo este sendo uma mulher. vide Jó 22.7, Pv 25.21), entretanto, para qualquer outro tipo de negócio (no caso Jesus era quem oferecia a água) um homem (que detivesse autoridade sobre a mulher) deveria se fazer presente. Jesus conhecia muito bem esta tradição, bem como a situação conjugal daquela mulher, que não era das melhores (uma sábia pergunta física e espiritualmente). Ora, sendo Jesus o próprio Deus, ele sabia exatamente a real situação da samaritana, contudo, o simples examinar das circunstâncias que norteavam a conversa já bastariam para esclarecer que ela passava por algum tipo de infortúnio (contextualização crítica). Vejamos, era ora sexta, como dizemos aqui no Nordeste “O Pingo do Meio-Dia”, quando os raios solares caem quase que perpendicularmente ao continente, a hora mais inóspita de todas para um serviço como o que ela estava desenvolvendo. Mas, por que ela estava ali? Com certeza, conforme tradição cultural da época, sua vida conjugal inadequada a separava do convívio comum com as demais mulheres, por isso, ela não vinha ao poço junto com as outras como era comum naquelas paragens (Champlin 2002), mas, sozinha, condoendo-se em seu presente obtuso.

Após esta pergunta contundente, enfim a verdade brota dos lábios da mulher: “Não tenho marido”. Ao que lhe respondeu Jesus com a autoridade de sempre: “Bem disseste, não tenho marido; porque cinco maridos já tiveste, e este que agora tens não é teu marido; isto disseste com verdade”(V17-18).

Ora, a mulher pediu a Jesus a água da vida, com esta resposta Jesus começara a “cavar o poço”, ou seja, trabalhar o seu caráter, que por sua vez, se encontrava simbolizado no solo pedregoso do seu coração! Com a expressão cavar o poço (para melhor compreensão), perceba que eu quero dizer que Jesus procurava abrir os olhos da mulher para sua real situação (contextualização), não se tratava de supremacia cultural, de um simples capricho humano, mas do seu futuro eterno. A comunicação do evangelho para salvação daquela mulher sempre foi o objetivo de Jesus em toda esta conversa. Algo que ficou muito bem comunicado nas palavras de Champlin (2002):

"Jesus tocou na ferida de sua vida, expondo aos seus olhos a culpa, e isso foi o primeiro passo concreto para cura de sua alma. Mediante um lance de olhos profético em sua vida privada tão vergonhosa, que após cinco casamentos sucessivos culminara em sua atual relação ilegítima, imediatamente ele afetou a consciência dela e desafiou a fé que ela deveria depositar nele. A convicção de pecado é a primeira condição indispensável para o perdão e é mesmo o princípio da conversa".

Neste primeiro momento, o que precisa ficar claro é que Jesus, em momento algum perdeu tempo com comunicação de cultura (Lausanne 1978), muito pelo contrário, a despeito das investidas preconceituosas da mulher, Jesus preocupou-se apenas em comunicar o evangelho de maneira pertinente e significativa, em parâmetros culturais que fizessem sentido a sua cosmovisão, e que a fizessem compreender a profundidade da mensagem de maneira simples, pois, esta é a atividade fim de toda e qualquer empreitada missionáia relevante.
Conforme continuaremos a ver.

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